segunda-feira, 5 de julho de 2010

Os pargos e as ondas

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O mar revolvia suas espumas e o enxame de pargos vermelhos pulava sobre as ondas como salmões nas cabeceiras de rios imaginários. Sentado na encosta de pedras que circundava a Igreja Nossa Senhora de Nazareth, em Saquarema, Chico olhava a água fria como se adivinhasse o caminho dos cardumes. A cada fim de tarde repetia esse ritual de contemplação e depois atirava ao mar o anzol e a paciência. Podia demorar horas até um peixe morder a isca, mas ao fim isso justificava a própria vida. A luta da presa para escapar do anzol, riscando a superfície azul do mar qual rima submersa de poema que não se consuma, era extenuante. Mas, no final, Chico vencia a contenda e, como um repentista de brilho, espuma e sal, exibia os peixes-versos sobre as pedras como um cordel marinho. Ele era exímio na arte da pesca e raras vezes lhe escapava um pargo, um xaréu, um pampo ou um marimbá, ramalhete de espécies que ele exibia como um poeta faz com as rimas, ainda sangrando no poema. Assim era Chico, delicadamente embrutecido.

Essa sua relação com os peixes, a solidão e o mar nascera talvez ainda na infância, quando nos mudamos para João Pessoa e, pela primeira vez, vimos um horizonte de água e sal, de sol a sol. Tambaú era somente uma praia de pescadores e jangadas, um vasto e longínquo deserto líquido onde banhávamos nossos medos e sonhos e adivinhávamos mistérios. Foram dois breves e profícuos anos de aprendizagem e nosso pai veio para o Rio, onde de se conhecer havia, mais que a cidade, as montanhas; mais que o mar, o amargo de nossas próprias vidas – dissera ele. E assim foi feito. De meninos, nos tornamos homens e atravessamos a Grande Noite fabricando esperanças e utopias para o país e nossas vidas. Cada um a seu modo, sentimos a dor da morte de nosso pai e de muitos amigos que nunca chegaram a rever a manhã prometida. Nessa caminhada, lutamos, amamos e nos fizemos nós próprios pais de nossos filhos.

À época, nos reuníamos com freqüência em Saquarema, cidade onde Chico fez muitas amizades e aprendeu a ouvir o mar, a falar com o mar, a amar o mar. O mesmo mar que a princípio era pura geografia e com o tempo transferiu-se inteiro ao seu próprio jeito de ser, como se lhe corressem nas veias o salitre, a brisa, as espumas, as marés – e o seu corpo fosse ele próprio uma enseada para os amigos e os amores. Como Ana, amiga e paixão eterna, com quem cultivava um relacionamento lindo, regado a muita cerveja, histórias e carinho. Ou os irmãos e amigos com quem dividia, além da brisa que soprava na varanda da casa, a ternura às vezes bruta de sua alma marítima, ora sacudida por tempestades e trovões, como quando defendia idéias nem sempre compartilhadas, ora calma e solidária, como quando dividia alegrias ou tristezas, derrotas ou vitórias dele mesmo ou de algum de nós, como um mar que guarda seus segredos.

Por isso, quando nos chegou a notícia de que ele estava gravemente doente relutamos a crer, até que um dia o vimos acordar enevoado e triste, como um oceano ferido que sangrava sargaços. Ele nos olhou como a um porto e por um instante seus olhos se fizeram absolutamente desertos, como dois lagos, duas ilhas depois de um naufrágio. Na imensidão vazia de sua alma, boiavam destroços, restos de esperanças e um horizonte de pássaros e promessas. Ele me olhou e me sorriu como se pudesse esconder a infinita solidão num sorriso. Era verão e o sol projetou timidamente a sombra de gaivotas na varanda. Fizemos um século de silêncio.

Após esse dia, Chico dedicou-se a lutar contra o câncer e a realizar coisas prosaicas e que sempre adiara, como flanar pela orla do Ingá, onde morava, navegar pela internet, ler alguns livros que abandonara, ouvir músicas e viajar, especialmente para Galos, pequena vila de pescadores do litoral potiguar onde ele alimentava o espírito de sonhos e paisagens. Há algum tempo o vi pela última vez nas pedras de Saquarema fitando o mar, como se se despedisse. Neste dia ele não pescou, apenas contemplou em silêncio a dança dos pargos. De longe, observei a espuma do mar que quebrava nas rochas voando grisalha em seus cabelos, como nuvens.

Uma semana depois, a notícia de sua morte não nos surpreendeu. No cemitério, assistimos seu corpo mergulhar naquele estranho oceano de terra onde vivem os mortos. Houve alívio e dor, algumas pétalas, prantos e saudades. E quando todos já haviam saído do cemitério aconteceu o que ninguém viu ou sequer imaginaria: duas enormes gaivotas brancas, como anjos vestidos a caráter, pousaram sobre a sepultura e nela depositaram dois pargos, tão vermelhos e brilhantes que mais lembravam rosas, auroras boreais. Dizem também que nessa hora uma grande onda lambeu os rochedos da Igreja Nossa Senhora de Nazareth, em Saquarema, jogando sobre o pátio vazio uma coroa de algas.

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