quinta-feira, 8 de julho de 2010

O Diário de Frida H

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É DIFÍCIL CONDENAR ou absolver o passado quando rugas já desenham o tempo em nossa face e o acaso nos impõe a tarefa de reconstruir a vida apenas com fragmentos de memória. Foi esse o meu dilema ao receber pelo correio o pequeno livro de capa vermelha com o nome vazado em branco: O Diário de Frida H. Na embalagem não havia remetente, mas, fosse quem fosse, ser-lhe-ei eternamente grato, pois, mais que uma simples memorabilia, aquele presente apócrifo era a chave que me conduziria ao passado, onde parte de mim ainda aguardava reencontrar-se com sua própria história.

O livro começava com uma epígrafe do comunista tcheco Júlio Fuchik, que testemunhou o horror nazista durante a Segunda Guerra e o registrou no dramático Testamento sob a Forca:

“Só vos peço uma coisa: se sobreviverdes a esta época, não vos esqueçais! Não vos esqueçais nem dos bons, nem dos maus. Juntai com paciência as testemunhas daqueles que tombaram por eles e por vós. Um belo dia, hoje será o passado, e falarão numa grande época e nos heróis anônimos que criaram a História. Gostaria que todo mundo soubesse que não há heróis anônimos. Eles eram pessoas, e tinham nomes, tinham rostos, desejos e esperanças, e a dor do último de entre os últimos não era menor do que a dor do primeiro, cujo nome há de ficar. Queria que todos esses vos fossem tão próximos como pessoas que tivésseis conhecido como membros da vossa família, como vós mesmos.”

O texto me sensibilizou e me arremessou ao dia em que tudo começou e quando o destino de Frida confundiu-se com o meu e o do país: 1o de abril. O Correio da Manhã estampava em letras garrafais a manchete “Fora!”. Mesmo eu, com pouco mais de vinte anos e nenhuma consciência política, não pude deixar de intuir a gravidade do que ocorria. A notícia que Frida leu era assustadora: "A nação não mais suporta a permanência do Sr. João Goulart à frente do governo. Chegou ao limite a capacidade de tolerá-lo por mais tempo. Não lhe resta outra saída senão entregar o governo ao seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao Sr. Goulart: saia.” O comboio de tanques e caminhões na rua sublinhou o sentido daquelas palavras, atropelando minha inconsciência e as esperanças de Frida, que fechou o jornal e recolheu-se em silêncio. O horror do pesadelo que se iniciava, todavia, só nos alcançou na tarde do dia seguinte, quando soldados armados cercaram a casa, na Tijuca, e bateram com truculência à porta, interrompendo o radiojornal em edição extraordinária que acabara de calar Dalva de Oliveira.

EU CONHECERA FRIDA dois anos antes num dos cinemas que havia na Praça Sães Pena – não lembro o nome, acho que Art Tijuca – no qual estreava O Pagador de Promessas. Frida era uma tijucana atípica que, além de gostar de cinema nacional, era amante de teatro, literatura e política. Foi um encontro inusitado. Mesmo sem nos conhecermos, logo na entrada ela me deu o braço e falou sorrindo, tensa: “Finja que me conhece, depois eu explico.” Após nos acomodarmos na sala de projeção, ela ainda permaneceu algum tempo com a atenção dividida entre o drama de Zé do Burro e a cortina que nos separava do hall de entrada, como se temesse a entrada súbita de alguém. Só quando as luzes se acenderam, no final, nos apresentamos e ela justificou-se dizendo que estava sendo seguida, mas não entrou em detalhes. Na saída perguntou-me o que achara do filme e minha resposta lhe arrancou um sorriso de hortelã, sinal de que também gostara. Apesar da diferença de idade – ela era bem mais velha que eu – trocamos telefones e, com o tempo, ficamos amigos e passei a freqüentar com assiduidade a casa dela, que ficava a alguns metros da praça, na Rua Major Ávila.

Na época eu cursava História na UFF e pesquisava genealogia judaica para uma monografia e talvez futuro livro sobre a resistência dos judeus alemães ao nazismo, assunto que me fascinava e através do qual acabei descobrindo que o H que Frida usava como sobrenome em seus artigos para a Esquerda Unida – um jornal clandestino que circulava no meio universitário – era judeu. Seu pai, Alexander Hoffman, era um judeu comunista que vivera em Munique e fugira da Alemanha para o Brasil, trazendo-a juntamente com sua mãe, Sophie, faxineira de um alto funcionário da Gestapo, em Berlim. Apesar da origem, Frida era atéia por convicção – condição que, se não a incomodava, a muitos parecia contraditória. Na verdade, ela era uma pessoa enigmática, triste e que, amiúde, se recolhia a um silêncio quase melancólico, como se guardasse um mistério indecifrável - justamente o que me fascinava e me levava a ouvi-la e, tantas vezes, apenas contemplar reverente aquele seu mutismo monástico.

Quando recolhia-se em si, ela pouco saía, ficando dias, semanas e até meses sem ver a luz do sol, apenas lendo. Vargas Llosa, Lorca, Neruda, Borges, García Márquez e Graciliano Ramos eram seus favoritos, superados apenas pela ‘santíssima trindade da literatura russa’: Dostoiévski, Gorki e Tolstoi. “Guerra e Paz é a obra-prima da literatura mundial”, dizia. E completava: “Nenhum livro em qualquer tempo revelou a natureza da guerra e seus efeitos sobre a alma humana como ele.” Além de fasciná-la, os livros transformavam a clausura de Frida num paradoxo: o corpo ficava recluso; mas o espírito, livre. Nessas ocasiões, a própria casa parecia-lhe adivinhar a alma e fechava-se. Durante o dia, as portas admitiam no máximo réstias de sol ao se abrirem a visitantes como eu. À noite, pouco mudava. Lâmpadas cansadas de sabe-se lá quanto tempo de uso emitiam uma luz tímida que mais lembrava a de candeeiros, reforçando ainda mais o ar de desolação. Contudo, arrisco-me a dizer, havia uma perfeita simbiose entre Frida e a arqueologia de sua casa – a louça sempre pousada sobre guardanapos com ponto de cruz, um aroma de café temperando o silêncio e até um canário, cujo canto eu podia adivinhar pela mímica atrás do vidro da janela –, num ambiente de equilíbrio tão frágil que, na minha imaginação, se uma mosca voasse quebraria o encanto.

Quem a visse ali em silêncio ao pé do rádio, embalando-se na cadeira com o corpo recurvado e o vestido de estambre branco abotoado até o pescoço, sempre com um livro à mão, mergulhada em palavras inauditas e sombras, jamais suporia quão infortunado fora seu passado – assunto aliás sobre qual falávamos até sermos bruscamente interrompidos.

– Já tive sonhos, acreditei num mundo melhor – dizia-me Frida ouvindo Dalva cantar Ave Maria no Morro no velho Telefunken comprado a prestação: “Barracão de zinco/Sem telhado, sem pintura/Lá no morro/Barracão é bangalô/Lá não existe/Felicidade de arranha-céu/Pois quem mora lá no morro/Já vive pertinho do céu.


– Não acredita mais? – indaguei, percebendo que acionara em seu espírito um desses silêncios constrangedores que cessam apenas quando a conversa retoma seu curso.


– Na verdade – disse ela, olhando-me longamente – meus sonhos foram destruídos quando eles arrancaram de mim meu companheiro Jonas – e não ofereceu mais detalhes, talvez por não saber, talvez para me poupar de recordações que não eram minhas.

E antes que eu perguntasse algo sobre Jonas e quem eram ‘eles’ foi que o rádio anunciou “Amigos ouvintes, aqui fala o Repórter Esso, testemunha ocular da história” e a porta estremeceu: TOC! TOC! TOC!

FRIDA LEVANTOU-SE PARA ATENDER enquanto eu aumentava o volume do rádio para ouvir a notícia que emudecera a Rainha da Voz e todo o país: “O senhor João Goulart acaba de deixar Brasília num jato Coronado da Varig rumo ao Uruguai, onde pediu asilo político. O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, declarou vaga a presidência e anunciou que poderá assumir o cargo ainda hoje”, disse Heron Domingues. Corri à sala para dar a notícia, a tempo de ver os soldados remexendo a estante e ouvir a voz firme do oficial pedindo a Frida que o acompanhasse. Nada pude fazer, a não ser segui-los até a rua, onde mal pude ver o jipe sair cantando pneu pela Major Ávila, semideserta àquela hora.

Foi a última vez que vi Frida Hoffman. Os anos se seguiram duros para mim e para muitas outras pessoas no país – algumas presas, torturadas, assassinadas; outras simplesmente “desaparecidas” sem vestígios. O conceito de crime ampliou-se de tal forma que alcançou o pensamento: intelectuais, jornalistas, artistas, estudantes, religiosos e políticos passaram a ser vistos como suspeitos, ameaças potenciais à segurança nacional. Muitos foram presos, como Frida. Por muito tempo ainda busquei notícias dela e de outros amigos sumidos, mas nada. As notícias ora davam conta de que fora solta e vivia em Friburgo, na casa de parentes, ora que continuava presa ou mesmo que estava morta. Olhavam-me com desconfiança e aconselhavam-me a seguir a vida, pois nada podia ser feito. Até que o tempo dos ditadores acabou e o povo retornou às ruas e cantou e gritou de alegria e as bandeiras e livros voltaram a circular livremente e voltamos a sorrir. Isso foi ontem, com a eleição de um presidente civil e o fim da escuridão. Apenas um dia antes de me chegar às mãos o livro que eu achava poderia responder às perguntas que me fizera ao longo dos últimos anos e cujos principais trechos agora destaco com tristeza.

07 DE ABRIL DE 1964

“Desde que cheguei, estou isolada em uma cela. Meu único contato é com meus raptores e seus prepostos, que me submetem a longas sessões de interrogatório. Sei que estou num quartel pela movimentação das tropas, pois a maior parte do tempo permaneço encapuzada, numa estratégia óbvia de me confundir e desorientar. Hoje, pela primeira vez, me autorizaram um banho de sol. E foi muito bom ver o dia, olhar o céu, sentir a brisa da manhã, mesmo por poucos minutos! Ao sair ao pátio, ainda desorientada pela luz, percebi que não estou sozinha e há muitas outras presas. Falei com uma que se identificou como Luíza e me disse que era jornalista... (trecho ininteligível) e tinha sido presa há dois anos em São Paulo e só há três meses estava aqui na Barão de Mesquita. Indaguei dos hematomas em sua boca e braços e ela me disse que eram marcas de tortura. Fiquei apavorada e pensei ‘graças a Deus não tocaram em mim’, num misto de alívio e culpa. De repente, vi do outro lado do pátio meu companheiro Jonas, que eu imaginava morto. Fiquei estática, sem acreditar. Quando me recuperei, tentei me aproximar, mas fui impedida com violência por um soldado que me conduziu de volta ao grupo de mulheres. Percebi que Jonas me viu e me sorriu um sorriso que eu já havia esquecido, de tão longínquo, e que nesse instante me dava novo alento e esperança. Sorri de volta, solidária. Jonas está vivo, não poderia haver notícia melhor!”

27 DE ABRIL DE 1964

“Somente agora começo a retomar meu sentido de orientação. Hoje durante o banho de sol soube por uma companheira que já é 27 de abril. Portanto, estou aqui há exatos 25 dias, que já me parecem uma eternidade! Imagine Jonas, sumido há mais de vinte anos! E ele é apenas um dentre os muitos ‘desaparecidos’ nessa noite de chumbo que se abateu no país, despertando pesadelos e horrores. Ontem tomei coragem e contei a um general sobre minha relação com Jonas, não sei se fiz bem, mas o fato é que ele me deixou vê-lo no pátio e foi maravilhoso abraçá-lo depois de tanto tempo! Conversamos por meia hora e eu mais ouvi que falei, pois Jonas estava ansioso para saber de mim, se eu havia casado, onde estava morando, o que fazia e essas coisas. Disse-lhe que estou bem, nunca casei e não sei porque fui presa, embora desconfiasse (ainda não disse, mas Jonas era militante da ANL – Aliança Nacional Libertadora – quando foi preso. Nesse período tive que me refugiar no interior de Minas, por orientação dele, que temia acontecer comigo o mesmo que com a mulher de Prestes, Olga Benário, que fora entregue aos alemães pela ditadura de Vargas por ser judia). Contei-lhe sobre a conversa que tive com Luíza no pátio e do medo de ser torturada. Ele me sorriu e disse para não me preocupar, pois os milicos não tinham nada contra mim e.... (trecho interrompido).”

20 DE JULHO DE 1966

“Os dias aqui transcorrem como peças de Kafka. Decorridos mais de dois anos e ainda não sei por que fui presa, não me acusaram de nada, mas me impedem de ter visitas ou mesmo advogado. No máximo me encontro com Jonas, por deferência de algum oficial mais liberal. Mas o que era para me desesperar me fortalece ainda mais. Ainda estou viva, apesar da violência com que passaram a me torturar desde o ano passado. Agora parece que já não buscam informação, apenas tentam destruir meu corpo, do que não estão longe pelo visto. Ontem, por exemplo, conduziram-me à sala de tortura, onde alguém ordenou aos gritos que eu me despisse e arrancou com violência meu capuz para que eu nunca esquecesse o que me aconteceria, como se isso fosse possível. Foi a primeira vez que mostraram o rosto, pelo que temi o pior. Mas antes que pudesse raciocinar, ele começou a me espancar e a me chamar de ‘vagabunda’, ‘comunistazinha de merda’ e coisas do gênero. Lembro-me de ter visto sua identidade impressa acima do bolso esquerdo da farda: Ten.-Cel. Sérgio e de como isso o irritou, levando-o a me arrastar até um tanque com água onde mergulhou minha cabeça repetidas vezes, até quase me asfixiar, sempre gritando que comunistas e judeus tinham ‘que morrer como ratos’ e que terminaria o que Hitler não fez – numa referência à minha ascendência. Por fim, arrastou-me ainda molhada até uma cadeira de aço que apelidavam de cadeira do dragão e me aplicaram uma sessão choques por todo meu corpo, especialmente nos seios e na vagina. Desmaiei, só acordei não sei quanto tempo depois, ainda nua, sendo examinada por um médico que disse ao oficial, ‘assim você pode matá-la!’. Ele sorriu cínico e se desculpou pelo excesso, ‘acho que descontei nela a derrota de ontem’, disse referindo-se à vitória da seleção portuguesa sobre o Brasil que, eu soube depois, tirou a chance do tri. E me fiz uma pergunta sem resposta: por que um médico que é treinado para salvar vidas ‘ajuda um torturador?”

7 DE SETEMBRO DE 1967

“O quartel amanheceu hoje semideserto por causa do desfile pela Independência. Ficaram só alguns soldados mais preocupados em acompanhar pelo rádio o amistoso entre Flamengo e Real Madrid do que nos vigiar. Aproveitamos para ficar à vontade e namorar um pouco. Disse ao Jonas que há uma semana não sou torturada o que talvez seja indício de que as coisas estão melhorando. Ele disse que as notícias que tinham não confirmavam isso. Resolvemos não falar em política e colocar o afeto em dia. Resgatamos memórias que achávamos se haviam perdido como o primeiro beijo na barca Rio-Niterói, quando ele quase foi atirado ao mar por ‘desrespeito’, deixando-me constrangida. Na época, beijar em público era absurdo. A lembrança me ruborizou, como se a antiga cena tivesse acabado de acontecer, revelando-me que a imaginação pode ser uma porta para a liberdade – e assim ficamos por instantes.”

13 DE AGOSTO DE 1968

“O número de presos vem aumentando cada vez mais. Ontem conversei com dois que chegaram na semana passada e perguntei porque havia sido presos. O mais novo, que aparentava 18 anos, me disse que estava com amigos pixando o muro do Pedro II com a frase ‘abaixo a ditadura’ quando agentes infiltrados o detiveram. Disse que era filho de um brigadeiro e portanto deveria sair logo. O outro, com cerca de 25 anos, falou que ‘caiu’ de bobeira, quando distribuía panfleto na porta da fábrica pela libertação dos presos políticos. Os dois ‘suicidaram-se’ uma semana depois, segundo nos disse um tenente. Fiquei triste, mas a tragédia aumentou minha convicção de que a ditadura um dia vai ser derrotada, por bem ou por mal.”

25 DE DEZEMBRO DE 1968

“Acabei de falar com um soldado chamado Bené, que é comunista e me disse que o regime está endurecendo, há poucas semanas fechou o Congresso, cassou parlamentares e suspendeu vários direitos constitucionais. Ele disse que tem muito medo de ser descoberto no quartel. À tarde, conversei com Jonas sobre a situação do país – a gente não se via desde que fora levado para ‘interrogatório’, há alguns dias. Ele me confessou que não vê outra saída se não a luta armada: ‘É a única forma de luta que nos resta’, disse, citando o líder nicaraguense Augusto César Sandino: ‘A liberdade não se conquista com flores.’ Ouvi seus argumentos e, pela primeira vez, discordamos. Tenho muitas dúvidas sobre a opção pela luta armada: ‘Acho que ainda temos alternativas antes de embarcar numa aventura’, ponderei. Ele ficou indignado com a observação e perguntou: ‘Você acha que pode enfrentar tanques, metralhadoras, censura, assassinatos e torturas com palavras?’ Fiquei em silêncio, sem responder. E descobri que o país encaminhava-se para a tragédia, o manto de obscurantismo que nos encobriu enfim turvara a nossa visão e o próprio futuro. Esta noite chorei muito, por nós.”


1 DE MAIO DE 1969

“Ontem à noite me encapuzaram e, pela enésima vez, levaram-me pelo longo e escuro corredor até a pequena sala forrada com material acústico. Desta vez, tiraram-me a roupa lentamente, tecendo comentários sobre meu corpo, mas já não reagi e aceitei o ritual com resignação e mudo desespero. Começaram pela combinação de socos e pontapés pelo corpo, choques elétricos nos dedos das mãos e dos pés, vagina, ânus... Um terror. E o pior é que não consegui mais nem gritar quando o fio desencapado mordeu minha carne e o barulho da maquininha se misturou com o riso do torturador. Senti o cheiro de pele queimando, enquanto amarravam o que restou de mim no pau-de-arara – desci ao inferno e desmaiei. Acordei na cama fria, ao lado de um oficial que me perguntou com ironia se estava me sentindo bem. Tive ânsia de vômito e sujei a cama de sangue e urina. Não sei até quando agüentarei, às vezes rezo para que a morte chegue rápido.”

11 DE JUNHO DE 1970

“Continuo me recuperando bem. Este mês não me torturaram, talvez por orientação médica ou por causa da Copa, não sei, todos estão ansiosos para ser tri... Ouvi de um carro de som que passava na rua uma música que me arrepiou e despertou em mim um sentimento de ambigüidade: “De repente é aquela corrente pra frente,/parece que todo o Brasil deu a mão,/todos ligados na mesma emoção, tudo é um só coração,/todos juntos vamos, pra frente Brasil,Brasil,/salve a Seleção!” A melodia é contagiante e tem tudo pra empurrar a torcida. Como brasileira, acho irônico falar em união e emoção, em ‘pra frente Brasil’ e coisas assim num momento de tanto terror. Será que as pessoas sabem o que está acontecendo? Que a ditadura vai usar a vitória para convencê-las de que o Brasil é o melhor país do mundo e coisas desse tipo? Por outro lado, como não ficar alegre com a possibilidade de ser tricampeã do mundo? Não deu outra, estiquei a mão pra fora da cela, levantei o polegar, gritei bem alto pra todo mundo ouvir: PRA FRENTE BRASIL!”


ÚLTIMA ANOTAÇÃO

“Minha querida Frida, desculpe-me invadir a privacidade deste seu diário que você me confiou há dias como se adivinhando o que aconteceria. Só para registrar, meu amor, o Brasil ganhou a Copa e é tricampeão mundial de futebol, como você torcia. Onde você estiver saiba que estou feliz, apesar de tudo. Hoje, quando o dia amanheceu e o silêncio foi assaltado por vozes e gritos, meu coração antecipou o que eu mais temia. Corri até as grades da cela a tempo de ver seu corpo ensangüentado sendo arrastado no corredor pelo carcereiro. Gritei de dor e desespero, em vão. Então abri o seu diário e resolvi acrescentar com lágrimas esta última nota, como homenagem e registro aos que o encontrarem: Frida Hoffman, a mulher que mais amei, foi assassinada no dia em que o Brasil sagrou-se tricampeão de futebol. E eu, Jonas, seu marido, em breve me encontrarei com ela onde estiver. Rio de Janeiro, 22 de junho de 1970.”

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Visto assim do alto...

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A CHAPA TAVA QUENTE na comunidade do Cantagalo. A rapaziada do contexto tava puta. Os vermes tavam na atividade na subida do morro há três dias e o movimento tomando bola direto. Maurinho não escondia o nervoso. Pô, afinal ele tinha um montão de farinha pra vender e os pão-com-manteiga de butuca acesa dia e noite... Por isso ele foi ao baile funk àquela noite e cheirou muito, fugindo do costume, que ele só fumava, dizia que pó era pra otário. Mas naquela noite queria ficar doidão mesmo, daí mandou ver. Quando Mary chegou lá pelas onze, já tava meio chapado, e até ofereceu um tequinho pra mina, mas ela recusou com jeito.

— Aí, filé, meu negócio é veneno, tu sabe... – disse ela, simulando um brinde no vazio.

Ana Maria era uma patricinha purpurinada lá do asfalto, 17 anos, toda style, com boné e calça da Gang, ligadona em funk e que estraçalhava no inglês, daí o apelido Mary, Mary Carey, referência a seus atributos físicos e à atriz pornô americana, não à cantora pop Mariah Carey, como pensavam alguns. Os pais lhe davam de tudo, mas pirou legal ninguém sabe por quê. Pai, mãe, namorado, ibeu, apê em Ipanema, casa de praia – jogou tudo pro alto e se mudou de mala e cuia pra comunidade. Conheceu Maurinho fazia uns quatro meses lá no baile do Chapéu Mangueira. Ele era um tremendo arroz, não se ligava em ninguém, mas não resistiu ao charme da mina e aparou uma rabiola com ela logo que se conheceram. Desde então, ela colou nele. E ele nela. Que nem arroz e feijão mesmo. Mas eu avisei pra ele:

— Aí, parceiro, abre o olho. Essa mina é mercenária...

— Qual foi, Perneta, tá me zoando? A mina é sangue-bom, tá ligado?

— Perneta é o caralho! Já te falei pra me chamar de Jorge! Eu sou aleijado, porra!?

Maurinho Capeta era foda. Ele me chamava assim só pra zoar. Ele sabia que eu não gostava. Mas me chamava assim desde moleque, só porque lá na pelada do rala-coco eu jogava na direita, mas só chutava com a esquerda. A direita era cegueta mesmo, daí a galera toda me zoava: “cruza, Perneta”, “toca a bola, Perneta”... Nunca gostei mesmo. No máximo eu admitia Jorge Perneta... Porra, eu tenho família, tenho nome: Jorge Santos. É nome de santo, santo guerreiro. Como meu velho, seu Jorge da Birosca, que Deus o tenha... Bom pai, honesto, honrado, trabalhador... assassinado por um alemão do Dendê, por motivo à-toa: futebol. Quer dizer, futebol e cachaça, né?, porque o X-9 só deu seis tiros no velho porque tava muito doido. A cada tiro, gritava: “Zico”, “Adílio”, “Leandro” e ia desfiando o nome de cada um que marcou na goleada. Ainda vejo o resultado piscando no placar do Maraca: Flamengo 6 x 0 Vasco. Porra, com esse placar, ele queria o quê? É claro que meu pai, mengão doente, zoou pra caralho o mané – como ele ia adivinhar que o maluco era doido mesmo!!!? Num gosto nem de lembrar, que fico assim, ó, arrepiado, meio de emoção meio de raiva mesmo do filho da puta. Foi a única vitória do Flamengo que ninguém no morro comemorou. Foi uma goleada sem foguete, sem festa, sem birita. O enterro do velho não me sai da cabeça: o caixão descendo enrolado no manto glorioso e o morro todo cantando o hino. Papai era muito querido, que nem o Flamengo, tá ligado? Mas vou te falar, irmão, esse jogo ainda não terminou não. Juro. Pode escrever, tô sempre ali no Baile do Dendê, lá no meio da poça, no Cocotá, e no dia que a gente se cruzar, eu e o alemão, mesmo que seja no inferno, eu acabo com ele: pá, pá, pá, pá...

Maurinho entendeu minha revolta e disse baixinho:

— Tranquilo, mano, morreu, morreu – e me abraçou quase comovido.

— Demorô – respondi, e saímos os três, eu, ele e Mary, zoando no salão.

O baile já bombava na batida irada de
MC Camurça quando Maurinho puxou o bonde:

"Cachorro/Se quer ganhar um dindin/Vende o X-9 pra mim/O patrão tava preso, mas mandou avisar/que a sua sentença nós vamos executar/É com bala de HK."

A parede de caixas com alto-falantes amplificava a batida do funk tão alto que se podia sentir o som na pele, o coração pirava como se quisesse sair do peito. O pancadão, o calor infernal, os corpos suados, as cabeleiras soltas, o pisca-pisca frenético das luzes coloridas, o brilho dos piercings nos umbigos das minas à mostra, as rimas proibidas do MC, o álcool, os hormônios, a adrenalina, tudo isso junto deixava a gente meio doidão.

— Norótico – balbuciei pra mim mesmo e saí pra dar um rolé, fumar um.

Sentei no alto do morro, acendi o baseado, dei uns tapas, segurei o barato o quanto pude e fui soltando a fumaça lentamente no vento quente da noite. Olhei a cidade iluminada lá embaixo e imaginei o cheiro dos lençóis das madames que dormiam no ar-condicionado, ao lado dos seus maridos gordos, cheirosas, cheias de tristeza e de amor pra dar, indiferentes ao que rolava na nossa alma, na vida da gente daqui de cima. Pensei como seria legal se eu morasse lá embaixo, playboysão, tênis da Nike, bermudão Cavallera, faculdade... Aí, viajei legal mesmo. Por instantes me imaginei assim, nascido no asfalto, cheio de banca: “doutor Jorge!” – já pensou? – e aí senti um tapinha nas costas e o riso debochado do Maurinho:

— Jorge Perneta, grande Jorge... Viajando só, mano? – disse, enrolando um também. 

A voz rouca do Maurinho me trouxe à real. Olhei pra ele e pra Mary, em silêncio.

— Qual foi, irmão, tá bolado? – disse ele, sentando-se ao meu lado.

Ficamos sentados ali no alto do morro dividindo a mesma paisagem, o mesmo destino. “Visto assim do alto, mais parece um céu no chão...”, lembrei do samba de Paulinho da Viola. Olhei pro Maurinho e vi apenas eu mesmo no fundo dos seus olhos, como uma miragem no deserto. Compreendi que nosso destino era aquele, não adiantava sonhar, a gente era só isso: dois apelidos tatuados na alma, para sempre. Perneta e Capeta. O meu, por conta da bola. O dele, por causa do tráfico. Duas marcas que nos uniria vida afora e não deixaria esquecer nossa origem, nosso lugar. O asfalto era um sonho, separado da gente por um abismo tão fundo como os olhos de Maurinho. Olhei pra Mary e os dela também eram poços de solidão. Então, entendi. A distância entre o morro e a cidade não era física, de chão, terra, cimento... Não, era o jeito ser, viver e até morrer que afastava a gente. Eu e Maurinho, duros, sem casa, família ou grana. Mary, filhinha de papai, com estudo, casa boa e muita grana. Mesmo que ela negasse, era outra origem, saca? Quer dizer, ela era que nem a gente, só que pelo avesso, tá ligado? Os três sem direção, sem prumo, soltos no vento como sementes de merda nenhuma, numa mesma viagem, de segunda, sem bilhete de volta. “Tudo errado, tudo errado”, pensei e me levantei, cutucando Maurinho: “Vamo nessa, irmãozinho?”, mesmo que não soubesse ao certo pra onde.

MAURINHO SE DESPEDIU DE MARY com um beijo. Ela se virou pra mim, me deu um sorriso, bateu forte a mão espalmada contra a palma da minha e foi subindo a rua 15 até sumir por trás do birosca do Zé Paraíba. Acenei pro vazio e descemos abraçados alguns metros até a altura do paiol, que ficava num barraco abandonado tomado pelo mato. A noite tava no fim, como o baile. Empurrei a porta do barraco com ajuda do joelho e, sem dizer nada, apanhei as armas. Pra mim, uma AR-15 e uma PT 380. Pro Maurinho, dei uma HK e uma M16, que ele preferia. Peguei algumas granadas, muita munição e descemos pro asfalto. No final da escada que dá acesso ao morro, já na Teixeira de Melo, paramos uma picape Hilux prata no berro. O motorista pisou no freio sem reagir e, nervoso, abriu a porta e tentou sair, mas o impacto da bala da M16 atirou ele de volta ao banco, já morto. O sangue jorrou do seu peito no estofamento, ao som de Zeca Pagodinho que tocava no CD cheio de luzes. “Deixa a vida me levar/Vida leva eu...” A música que Maurinho mais gostava. “Que beleza!”, ele disse, aumentando o volume, indiferente ao silêncio do morto. “Vamo nessa, irmão”, falei, e reiniciamos a descida com o cheiro de pólvora e o barulho do tiro ainda zoando no silêncio da rua deserta.
Chegamos à Barão da Torre e paramos em frente a um prédio com jardim, grades e vidro fumê. Ouvimos a sirene ao longe e, da calçada mesmo, por trás das grades e do vidro escuro, vimos a silhueta do porteiro e pá! Detonamos o cara dali mesmo com a AR-15. Foi só um tiro e o corpo explodiu contra a parede, antes de rolar no tapete da portaria e parar morto de um jeito meio desengonçado que nos fez rir. Parecia um boneco de pano. Subimos pelo elevador social até a cobertura do prédio de quatro andares. O sábado já anunciava o domingo quando tocamos a campainha do apê. Um velho assustado abriu a porta pra receber a neta que tinha ido ao baile funk e levou uma coronhada na testa. Mulher, filhos e netos correram aos gritos pro centro da sala. O coroa caiu gemendo no sofá com um galo na testa. Entramos. 

— Olha que beleza, mano, vai encarar? – apontei pro Maurinho a gatinha que tremia sob uma camisola azul de seda transparente.

— Pelo amor de Deus, levem o que quiser, mas não toquem na minha neta, ela tem só 14 anos —  implorou a velhinha se borrando de medo.

Olhei pra aquele corpo velho, enrugado, branquelo, e senti raiva, fui até o balcão do bar, peguei uma garrafa que estava aberta, servi uma dose e tomei sem gelo mesmo, num gole. Repeti a dose, virei pra menina que chorava baixinho e, não me pergunte por que, dei um teco bem no meio da testa dela. Quase ao mesmo tempo, Maurinho mandou uma rajada de M16 que atingiu o resto da família como um enxame de abelhas. Maior adrenalina, cara, uns tentavam estancar o sangue que jorrava dos furos com a mão, outros se jogavam no chão tentando escapar. Passamos cerol geral – a mulher, o menino de 6 anos, uma menininha de 2 e o moleque de uns 16, não sobrou unzinho pra contar a história. Por último eu mesmo dei um tiro de misericórdia na cabeça do velho que ainda gemia. Aí tomei outra dose de uísque e olhei no rótulo o cavalo branco como as paredes, que empinava.

“Maior terror, os home quando chegar vão detonar a gente”, disse enquanto arrumava as idéias e os corpos num canto. “Ajuda aí, mano”, falei pro Maurinho, que reclamou: “Bando de filhos da puta, vivem com Deus na barriga e mesmo morto dão trabalho...” “Fala em Deus não...”, disse fazendo o sinal da cruz pra espantar o azar. “Mas sabe que tu tem razão? É tudo montado no ouro mesmo, só a gente na merda... Que se foda, meu irmão, tô nem aí, quero é mais... tá sabendo? E sabe que eu até que gostei, tava na maior secura mesmo, já tinha mês e meio que não fazia uma parada tipo assim adrenalina... Pô, é sinistro, a gente se sente... Pode parecer maluquice, mas sabe que matar faz eu me se sentir vivo?” Maurinho riu da minha conversa mole e eu insisti “tá rindo de quê? É isso mesmo, mano, a gente né bandido? Então... é do ofício, não tem essa de inocente na parada, não. Tamo aí é pra matar e morrer mesmo, tá ligado?”, falei na hora em que as sirenes dispararam lá fora. 

— Rapa fora, Perneta, são os home, irmãozinho – gritou Maurinho apagando meus pensamentos e me puxando pelo braço rumo à escada de serviço.

— Aqui é a polícia. Tá tudo dominado! Joga as armas e se entrega ou vai morrer todo mundo! – berrou o alto-falante dos meganhas.

— Caralho, mané, tá a maior zona lá fora – falou Maurinho, saltando sobre o corpo do porteiro banhado pelo sangue e a luz do domingo que amanhecia.

Na rua, sirenes, luzes, ambulâncias, camburões, carros da TV Globo e bombeiros lembravam um filme daqueles que a gente vê na TV na hora do almoço. A gente tava cercado mesmo, sem saída. E o engraçado é pela primeira vez eu podia escolher viver a minha vida de merda ou sair fora de vez. Ainda tentei os fundos, mas os home tavam lá também. Maurinho olhou pra mim acuado e acenou a arma, apontando uma porta. Meti bronca e arrombei a pontapés. Entramos. O filho do porteiro tentou escapar pela janela, mas agarrei ele pelo pescoço e falei baixinho, encostando a PT no ouvido dele: “Aí, fica quieto, cumpade, tá limpo, a gente só quer sair dessa!”

— Não adianta resistir, o prédio tá cercado! A gente vai entrar! – gritou a polícia.   

Maurinho olhou pra mim e puxou o filho do porteiro, arrastando o moleque até a portaria do prédio, de onde berrou bem alto, metendo bronca legal:

— Aí, se liga nessa, meu irmão, a gente é do comando e tamo incorporado, tá ligado? Só vamo sair daqui morto, tá sabendo? – e mostrou a granada e a PT 380 encostada na cabeça do menino que tremia e rezava baixinho. – A gente quer um advogado e a televisão ou vamo passar rodo geral. E quando vier traz também uma pizza que minha barriga tá uma cuíca, irmão! – falou ele.

Mesmo sem entender direito o que ele tava gritando, eu disse:

— É isso aí, mermão, demorô! – e completei zoando: – E traz também uma Coca litro gelada, se não a gente vai beber mesmo é o sangue quente de vocês!  

Maurinho deu uma gargalhada da piada, acho que de nervoso, interrompida pelo barulho abafado do tiro que atravessou o jardim e explodiu bem na sua cabeça, jogando os miolos e o corpo magro dele contra a parede branca. Levei uns dois segundos pra entender o que tinha acontecido e gritar:

— Filhos da puta! – antes de puxar o pino da granada.

 

Rio de Janeiro, 28/12/2006
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segunda-feira, 5 de julho de 2010

Os pargos e as ondas

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O mar revolvia suas espumas e o enxame de pargos vermelhos pulava sobre as ondas como salmões nas cabeceiras de rios imaginários. Sentado na encosta de pedras que circundava a Igreja Nossa Senhora de Nazareth, em Saquarema, Chico olhava a água fria como se adivinhasse o caminho dos cardumes. A cada fim de tarde repetia esse ritual de contemplação e depois atirava ao mar o anzol e a paciência. Podia demorar horas até um peixe morder a isca, mas ao fim isso justificava a própria vida. A luta da presa para escapar do anzol, riscando a superfície azul do mar qual rima submersa de poema que não se consuma, era extenuante. Mas, no final, Chico vencia a contenda e, como um repentista de brilho, espuma e sal, exibia os peixes-versos sobre as pedras como um cordel marinho. Ele era exímio na arte da pesca e raras vezes lhe escapava um pargo, um xaréu, um pampo ou um marimbá, ramalhete de espécies que ele exibia como um poeta faz com as rimas, ainda sangrando no poema. Assim era Chico, delicadamente embrutecido.

Essa sua relação com os peixes, a solidão e o mar nascera talvez ainda na infância, quando nos mudamos para João Pessoa e, pela primeira vez, vimos um horizonte de água e sal, de sol a sol. Tambaú era somente uma praia de pescadores e jangadas, um vasto e longínquo deserto líquido onde banhávamos nossos medos e sonhos e adivinhávamos mistérios. Foram dois breves e profícuos anos de aprendizagem e nosso pai veio para o Rio, onde de se conhecer havia, mais que a cidade, as montanhas; mais que o mar, o amargo de nossas próprias vidas – dissera ele. E assim foi feito. De meninos, nos tornamos homens e atravessamos a Grande Noite fabricando esperanças e utopias para o país e nossas vidas. Cada um a seu modo, sentimos a dor da morte de nosso pai e de muitos amigos que nunca chegaram a rever a manhã prometida. Nessa caminhada, lutamos, amamos e nos fizemos nós próprios pais de nossos filhos.

À época, nos reuníamos com freqüência em Saquarema, cidade onde Chico fez muitas amizades e aprendeu a ouvir o mar, a falar com o mar, a amar o mar. O mesmo mar que a princípio era pura geografia e com o tempo transferiu-se inteiro ao seu próprio jeito de ser, como se lhe corressem nas veias o salitre, a brisa, as espumas, as marés – e o seu corpo fosse ele próprio uma enseada para os amigos e os amores. Como Ana, amiga e paixão eterna, com quem cultivava um relacionamento lindo, regado a muita cerveja, histórias e carinho. Ou os irmãos e amigos com quem dividia, além da brisa que soprava na varanda da casa, a ternura às vezes bruta de sua alma marítima, ora sacudida por tempestades e trovões, como quando defendia idéias nem sempre compartilhadas, ora calma e solidária, como quando dividia alegrias ou tristezas, derrotas ou vitórias dele mesmo ou de algum de nós, como um mar que guarda seus segredos.

Por isso, quando nos chegou a notícia de que ele estava gravemente doente relutamos a crer, até que um dia o vimos acordar enevoado e triste, como um oceano ferido que sangrava sargaços. Ele nos olhou como a um porto e por um instante seus olhos se fizeram absolutamente desertos, como dois lagos, duas ilhas depois de um naufrágio. Na imensidão vazia de sua alma, boiavam destroços, restos de esperanças e um horizonte de pássaros e promessas. Ele me olhou e me sorriu como se pudesse esconder a infinita solidão num sorriso. Era verão e o sol projetou timidamente a sombra de gaivotas na varanda. Fizemos um século de silêncio.

Após esse dia, Chico dedicou-se a lutar contra o câncer e a realizar coisas prosaicas e que sempre adiara, como flanar pela orla do Ingá, onde morava, navegar pela internet, ler alguns livros que abandonara, ouvir músicas e viajar, especialmente para Galos, pequena vila de pescadores do litoral potiguar onde ele alimentava o espírito de sonhos e paisagens. Há algum tempo o vi pela última vez nas pedras de Saquarema fitando o mar, como se se despedisse. Neste dia ele não pescou, apenas contemplou em silêncio a dança dos pargos. De longe, observei a espuma do mar que quebrava nas rochas voando grisalha em seus cabelos, como nuvens.

Uma semana depois, a notícia de sua morte não nos surpreendeu. No cemitério, assistimos seu corpo mergulhar naquele estranho oceano de terra onde vivem os mortos. Houve alívio e dor, algumas pétalas, prantos e saudades. E quando todos já haviam saído do cemitério aconteceu o que ninguém viu ou sequer imaginaria: duas enormes gaivotas brancas, como anjos vestidos a caráter, pousaram sobre a sepultura e nela depositaram dois pargos, tão vermelhos e brilhantes que mais lembravam rosas, auroras boreais. Dizem também que nessa hora uma grande onda lambeu os rochedos da Igreja Nossa Senhora de Nazareth, em Saquarema, jogando sobre o pátio vazio uma coroa de algas.
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Sobre anjos, meninos e patos

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Chegaram antes do sol, acordando o silêncio e a manhã mundana com o rufar das asas. Apenas sombras vadias e bêbados noctívagos testemunharam a revoada de anjos que tomou conta da cidade acomodando-se em ruas, praças, praias e calçadas sonolentas. Como qualquer criança, traziam pequenas Esperanças e Utopias de estimação, as primeiras eram verdes como periquitos; as segundas, vermelhas como flamingos. Pela manhã, as pessoas acharam inusitadas aquelas estranhas criaturas pulando nos sinais, voando do chão aos ombros uns dos outros, jogando malabares sobre caixotes, pulando carniça, equilibrando garrafas pet no nariz e fazendo palhaçadas com seus bichinhos de estimação – mas logo se acostumaram. Os motoristas assistiam aos breves shows, atiravam uma moeda ou pão e seguiam para o trabalho mais alegres. À noite, ao retornarem, divertiam-se novamente com a trupe de seres alados que saltavam em trapézios invisíveis, contorciam-se entre carros e engoliam fogo. A cada noite chegavam mais e mais anjos que enchiam esquinas e praças, incorporando-se à paisagem da cidade. Até que, não se sabe como ou quando, começaram a mudar.

Primeiro passaram a hostilizar as pessoas atiçando sobre elas suas Esperanças e Utopias famintas ou exibindo-lhes ostensivamente os pequeninos falos de luz que urinavam auroras a qualquer hora, indiferentes às mulheres que passavam e coravam de desejo e medo. Depois deram para sobrevoar praças e mergulhar nas fontes, refrescando-se do calor do dia, ou tocar fogo nas plumas que caíam das asas para espantar o frio das noites de inverno. Definitivamente, haviam perdido o discernimento e se transformado num estorvo para a cidade – já não agradava vê-los nas ruas, marquises, portas de igrejas. As pessoas não achavam mais graça nem nos bichinhos de estimação que de início tanto admiravam; agora andavam desconfiadas, evitando até olhar para eles. Aventou-se que poderiam estar doentes ou afetados pelas mudanças climáticas que assolavam o planeta, o que justificaria a queda gradual de suas asas e o aparecimento de garras no lugar delas. Houve quem duvidasse de que eram anjos e afirmasse até que eram perigosos e cresciam e se multiplicavam, sim, o que era uma ameaça ao equilíbrio político e social da cidade. De anjos de primeira ordem tornaram-se potestades das trevas, monstros, gárgulas amedrontadores.

A cidade apavorada resguardou-se, adotando estranhos mecanismos de defesa: as pessoas passaram a andar em carros blindados com vidros escuros e fechados, instalar câmeras de segurança em todos os lugares, evitar sair à noite ou percorrer ruas e praças sozinhos e até a construir casas sem portas ou janelas. Havia de se precaver, pois sem asas os anjos eram como meninos, não havia como diferenciá-los. Então, passou-se a temer as crianças, e os parques ficaram vazios, os jardins perderam a infância e o medo enfim cristalizou-se, quando a notícia chegou: haviam matado uma mulher com um tiro na barriga. Uma mulher grávida e o seu feto, bendito fruto do vosso ventre. Por motivo à-toa, banal, um relógio dourado que lhe escorria do pulso como o tempo na janela do carro. Por que um anjo, senhor das horas e do tempo primordial, guardião do tempo fabuloso do princípio – segundo consta –, iria querer objeto tão humano e material como um relógio? A resposta talvez estivesse na frase enigmática pronunciada pelo anjo delinqüente ao ser preso e que os jornais publicaram no dia seguinte: “Ele me disse: até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário será purificado.” Referia-se à profecia bíblica de Daniel sobre o apocalipse e o tempo do retorno, da recriação, do recomeço – o que agora fazia todo sentido. A população indignada amaldiçoava o dia em que os anjos chegaram e perguntava-se o que fazer para se livrar deles.

A proposta veio de um velho político, que sugeriu organizar um torneio de caça, a exemplo do que fazem os europeus com patos, marrecos, raposas, texugos e outras espécies. A idéia foi recebida com euforia e posta em prática, não sem antes criar-se o regulamento do Primeiro Torneio Permanente de Caça aos Anjos que, em resumo, dizia: 1º - É permitido caçar anjos somente no território estadual e ilhas adjacentes; 2º - Cada caçador não pode abater mais do que dez espécimes por dia, cuidando para preservar, sempre que possível, as Utopias e Esperanças; 3º - É obrigatório obter licença na Comissão Estadual de Caça; e 4º - Para evitar excessos, os participantes obrigam-se a utilizar na caçada exclusivamente: a) arma automática – arma de fogo que, mediante uma única ação sobre o gatilho, faz uma série contínua de vários disparos; ou b) arma longa – rifles, espingardas e qualquer arma de fogo considerada longa. Revogam-se as disposições em contrário.

Em poucas semanas, milhares de pessoas se inscreveram na competição e as indústrias e lojas de armas e munições nunca faturaram tanto. O torneio foi uma chacina. Ou melhor, várias. Um sucesso. A população de anjos diminuiu sensivelmente e, conseqüentemente, o número de crianças, pois – como se sabe – amiúde ambos se confundiam. Assim foi até já não haver mais anjos ou meninos de nenhuma espécie. A cidade enfim respirou aliviada. As pessoas estavam em paz. E mergulharam tão fundo na solidão dos dias que nem perceberam o tempo tingir seus cabelos de nuvens enquanto as Esperanças e Utopias alçavam vôo rumo ao horizonte da tarde imóvel.

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Cinzas e Diamantes

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Santa Filomena era daqueles lugares estranhos que só existem na imaginação dos loucos e dos poetas, e onde os acontecimentos muitas vezes me faziam ao cabo de um tempo duvidar se de fato haviam ocorrido ou não passavam de lendas como as que costumava ouvir da boca de Pedro Nega, um doido manso que tinha por hobby assustar a molecada com suas histórias de horror e encantamento, recheadas de mulas-sem-cabeça, sacis, boitatás e o mais que sua imaginação permitisse. Foi uma dessas histórias que só os loucos concebem que deixou a cidade consternada e marcou para sempre em minha memória aqueles poucos anos em que lá vivi. Aconteceu nos anos 60 e envolveu a professora de português Esmeralda K. e seu marido coronel Fred Kimberley, um engenheiro civil e paisagista sul-africano que, chegando à cidade no final do século XIX, contratou-a para lhe ensinar português. O que ela fez tão bem que acabou conquistando-o e com ele construindo uma história de amor cujo final até hoje intriga e enleia a imaginação.

O coronel não gostava da patente fajuta que lhe fora atribuída pelos moradores da cidade e que traduzia apenas a maneira com que o povo costuma distinguir os que conseguem algum prestígio na comunidade, seja ele econômico, político ou social. Ou os três juntos, o que aliás era mais comum, embora nenhum destes fosse o caso de Fred Kimberley, que conquistou respeito de todos mais pelo jeito afável e solidário com que se relacionava e exercia seu conhecimento. A profissão não lhe rendeu muito dinheiro, apenas o suficiente para, aos 98 anos, desfrutar com Esmeralda o conforto de uma casa ampla e agradável, de três quartos, com um belo jardim e um quintal cheio de árvores frutíferas, onde ele cultivava o hábito de plantar espécimes da flora brasileira, entre os quais tinha preferência por um frondoso acaiacá, árvore da família do cedro que algumas tribos consideram sagrada e que, anualmente, se engalanava de flores e atraía muitos pássaros, além de fornecer a sombra que refrescava a varanda dos fundos da casa, onde ele costumava deitar para meditar. Como engenheiro e paisagista, Fred sempre soubera valorizar a harmonia entre o concreto e o verde, entre as necessidades do corpo e do espírito, pendendo para este, o que o aproximava mais dos poetas que dos calculistas.

Fora assim quando declarou seu amor a Esmeralda com um soneto que, mesmo tantos anos depois, ainda o levava a identificar nele, sem falsa modéstia, uma certa qualidade literária, especialmente no trecho em que descrevia seus sentimentos e desejos:

O dia amanheceu na rua
vadio pássaro sem ninho
roubando o teu o encanto
com um beijo na janela nua.
E o vento oculto na cortina
ergueu a saia da manhã
brindando a sonolenta lua e
a minha vida que agora é tua.

Evidentemente, o senso crítico do engenheiro já não era o mesmo, embora isso pouco lhe importasse, pois Esmeralda, que também se chamava Maria mas odiava o nome, aos 90 anos ainda guardava a folha amarelecida pelo tempo onde ele declarara seu amor, um amor tão profundo e intenso que juravam haveria de sobreviver ao tempo e – quem sabe – à própria morte. E sempre que chegava uma visita um pouco mais íntima, lá se ia Esmeralda com as mãos já trêmulas de velhice e os olhos embaçados pela catarata mostrar o poema esmaecido. Quase toda a cidade já lera Minha Esmeralda e sabia de cor alguns trechos. Orgulhoso, o velho Kimberley apenas entrelaçava as mãos nas dela e sorria, retribuindo em silêncio aquele amor depurado pelo tempo e que a todos ainda admirava de tão forte e obsequioso.

Assim o coronel e sua esposa passavam a maior parte do tempo: sentados na varanda da casa de mãos dadas recebendo os amigos dos tempos em que cidade tinha poucas casas e todos se conheciam pelo nome. Pois nos anos em que os conheci, mesmo ainda pequena, a cidade já não era aquele povoado de duas ou três ruas com um comércio acanhado, a capela da padroeira que lhe dava nome e o grupo escolar onde se conheceram em tempos idos. Não, Santa Filomena agora tinha rodoviária, farmácia, campo de futebol, casas com parabólicas, carros – poucos, é verdade, mas tinha –, prefeitura, posto de saúde e até um shopping-center, o Filomena’s Malll, ícone da modernidade e orgulho dos moradores, principalmente dos jovens. Todavia, ainda era um lugar tranqüilo, desses que a gente encontra no interior e onde a vida parece se arrastar descalça e os dias se repetem um após outro, interrompidos apenas pela escuridão da noite.


Pois foi num dia desses que de tão comuns nada prometem que aconteceu o inusitado – a casa dos Kimberley não abriu portas ou janelas como de costume e o sol ficou o dia todo ali de plantão, contido, sem poder entrar, até que a lua o substituiu no turno da noite e as estrelas e vaga-lumes acenderam e apagaram e outra manhã chegou e mais dois ciclos se cumpriram até que na quarta noite a cidade testemunhou um fenômeno extraordinário: um raio vindo não se sabe de onde atingiu e pôs abaixo a velha casa dos Kimberley, ricocheteou no chão e voou até o velho acaiacá florido, carbonizando-o de cima abaixo como uma serra de luz azul matizando a noite branca de lua. Foi um susto medonho, um verdadeiro horror. A cidade toda acorreu, uns por curiosidade, outros por sincera solidariedade, a maioria estarrecida. Dezenas de mãos atravessaram a noite revirando os destroços na esperança de encontrar alguém com vida, num esforço vão.

O dia amanheceu e, para espanto e perplexidade de todos, sob os escombros e as cinzas ainda fumegantes da casa não encontraram ninguém. Onde ela se erguia havia apenas uma cratera, como uma enorme pira crematória, de cuja base irradiava-se uma intensa luz azulada. Conta-se – e isto, confesso, não me lembro – que no desespero de encontrar vestígios de Esmeralda e Fred, os moradores seguiram a luz até o fim da cavidade aberta no solo pelo raio e, lá chegando, descobriram duas imensas gemas incandescentes que irradiavam um brilho jamais visto – eram dois diamantes puros, um ao lado do outro, lapidados parecia há séculos.


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