segunda-feira, 5 de julho de 2010

Sobre anjos, meninos e patos

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Chegaram antes do sol, acordando o silêncio e a manhã mundana com o rufar das asas. Apenas sombras vadias e bêbados noctívagos testemunharam a revoada de anjos que tomou conta da cidade acomodando-se em ruas, praças, praias e calçadas sonolentas. Como qualquer criança, traziam pequenas Esperanças e Utopias de estimação, as primeiras eram verdes como periquitos; as segundas, vermelhas como flamingos. Pela manhã, as pessoas acharam inusitadas aquelas estranhas criaturas pulando nos sinais, voando do chão aos ombros uns dos outros, jogando malabares sobre caixotes, pulando carniça, equilibrando garrafas pet no nariz e fazendo palhaçadas com seus bichinhos de estimação – mas logo se acostumaram. Os motoristas assistiam aos breves shows, atiravam uma moeda ou pão e seguiam para o trabalho mais alegres. À noite, ao retornarem, divertiam-se novamente com a trupe de seres alados que saltavam em trapézios invisíveis, contorciam-se entre carros e engoliam fogo. A cada noite chegavam mais e mais anjos que enchiam esquinas e praças, incorporando-se à paisagem da cidade. Até que, não se sabe como ou quando, começaram a mudar.

Primeiro passaram a hostilizar as pessoas atiçando sobre elas suas Esperanças e Utopias famintas ou exibindo-lhes ostensivamente os pequeninos falos de luz que urinavam auroras a qualquer hora, indiferentes às mulheres que passavam e coravam de desejo e medo. Depois deram para sobrevoar praças e mergulhar nas fontes, refrescando-se do calor do dia, ou tocar fogo nas plumas que caíam das asas para espantar o frio das noites de inverno. Definitivamente, haviam perdido o discernimento e se transformado num estorvo para a cidade – já não agradava vê-los nas ruas, marquises, portas de igrejas. As pessoas não achavam mais graça nem nos bichinhos de estimação que de início tanto admiravam; agora andavam desconfiadas, evitando até olhar para eles. Aventou-se que poderiam estar doentes ou afetados pelas mudanças climáticas que assolavam o planeta, o que justificaria a queda gradual de suas asas e o aparecimento de garras no lugar delas. Houve quem duvidasse de que eram anjos e afirmasse até que eram perigosos e cresciam e se multiplicavam, sim, o que era uma ameaça ao equilíbrio político e social da cidade. De anjos de primeira ordem tornaram-se potestades das trevas, monstros, gárgulas amedrontadores.

A cidade apavorada resguardou-se, adotando estranhos mecanismos de defesa: as pessoas passaram a andar em carros blindados com vidros escuros e fechados, instalar câmeras de segurança em todos os lugares, evitar sair à noite ou percorrer ruas e praças sozinhos e até a construir casas sem portas ou janelas. Havia de se precaver, pois sem asas os anjos eram como meninos, não havia como diferenciá-los. Então, passou-se a temer as crianças, e os parques ficaram vazios, os jardins perderam a infância e o medo enfim cristalizou-se, quando a notícia chegou: haviam matado uma mulher com um tiro na barriga. Uma mulher grávida e o seu feto, bendito fruto do vosso ventre. Por motivo à-toa, banal, um relógio dourado que lhe escorria do pulso como o tempo na janela do carro. Por que um anjo, senhor das horas e do tempo primordial, guardião do tempo fabuloso do princípio – segundo consta –, iria querer objeto tão humano e material como um relógio? A resposta talvez estivesse na frase enigmática pronunciada pelo anjo delinqüente ao ser preso e que os jornais publicaram no dia seguinte: “Ele me disse: até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário será purificado.” Referia-se à profecia bíblica de Daniel sobre o apocalipse e o tempo do retorno, da recriação, do recomeço – o que agora fazia todo sentido. A população indignada amaldiçoava o dia em que os anjos chegaram e perguntava-se o que fazer para se livrar deles.

A proposta veio de um velho político, que sugeriu organizar um torneio de caça, a exemplo do que fazem os europeus com patos, marrecos, raposas, texugos e outras espécies. A idéia foi recebida com euforia e posta em prática, não sem antes criar-se o regulamento do Primeiro Torneio Permanente de Caça aos Anjos que, em resumo, dizia: 1º - É permitido caçar anjos somente no território estadual e ilhas adjacentes; 2º - Cada caçador não pode abater mais do que dez espécimes por dia, cuidando para preservar, sempre que possível, as Utopias e Esperanças; 3º - É obrigatório obter licença na Comissão Estadual de Caça; e 4º - Para evitar excessos, os participantes obrigam-se a utilizar na caçada exclusivamente: a) arma automática – arma de fogo que, mediante uma única ação sobre o gatilho, faz uma série contínua de vários disparos; ou b) arma longa – rifles, espingardas e qualquer arma de fogo considerada longa. Revogam-se as disposições em contrário.

Em poucas semanas, milhares de pessoas se inscreveram na competição e as indústrias e lojas de armas e munições nunca faturaram tanto. O torneio foi uma chacina. Ou melhor, várias. Um sucesso. A população de anjos diminuiu sensivelmente e, conseqüentemente, o número de crianças, pois – como se sabe – amiúde ambos se confundiam. Assim foi até já não haver mais anjos ou meninos de nenhuma espécie. A cidade enfim respirou aliviada. As pessoas estavam em paz. E mergulharam tão fundo na solidão dos dias que nem perceberam o tempo tingir seus cabelos de nuvens enquanto as Esperanças e Utopias alçavam vôo rumo ao horizonte da tarde imóvel.

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