quinta-feira, 8 de julho de 2010

Visto assim do alto...

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A CHAPA TAVA QUENTE na comunidade do Cantagalo. A rapaziada do contexto tava puta. Os vermes tavam na atividade na subida do morro há três dias e o movimento tomando bola direto. Maurinho não escondia o nervoso. Pô, afinal ele tinha um montão de farinha pra vender e os pão-com-manteiga de butuca acesa dia e noite... Por isso ele foi ao baile funk àquela noite e cheirou muito, fugindo do costume, que ele só fumava, dizia que pó era pra otário. Mas naquela noite queria ficar doidão mesmo, daí mandou ver. Quando Mary chegou lá pelas onze, já tava meio chapado, e até ofereceu um tequinho pra mina, mas ela recusou com jeito.

— Aí, filé, meu negócio é veneno, tu sabe... – disse ela, simulando um brinde no vazio.

Ana Maria era uma patricinha purpurinada lá do asfalto, 17 anos, toda style, com boné e calça da Gang, ligadona em funk e que estraçalhava no inglês, daí o apelido Mary, Mary Carey, referência a seus atributos físicos e à atriz pornô americana, não à cantora pop Mariah Carey, como pensavam alguns. Os pais lhe davam de tudo, mas pirou legal ninguém sabe por quê. Pai, mãe, namorado, ibeu, apê em Ipanema, casa de praia – jogou tudo pro alto e se mudou de mala e cuia pra comunidade. Conheceu Maurinho fazia uns quatro meses lá no baile do Chapéu Mangueira. Ele era um tremendo arroz, não se ligava em ninguém, mas não resistiu ao charme da mina e aparou uma rabiola com ela logo que se conheceram. Desde então, ela colou nele. E ele nela. Que nem arroz e feijão mesmo. Mas eu avisei pra ele:

— Aí, parceiro, abre o olho. Essa mina é mercenária...

— Qual foi, Perneta, tá me zoando? A mina é sangue-bom, tá ligado?

— Perneta é o caralho! Já te falei pra me chamar de Jorge! Eu sou aleijado, porra!?

Maurinho Capeta era foda. Ele me chamava assim só pra zoar. Ele sabia que eu não gostava. Mas me chamava assim desde moleque, só porque lá na pelada do rala-coco eu jogava na direita, mas só chutava com a esquerda. A direita era cegueta mesmo, daí a galera toda me zoava: “cruza, Perneta”, “toca a bola, Perneta”... Nunca gostei mesmo. No máximo eu admitia Jorge Perneta... Porra, eu tenho família, tenho nome: Jorge Santos. É nome de santo, santo guerreiro. Como meu velho, seu Jorge da Birosca, que Deus o tenha... Bom pai, honesto, honrado, trabalhador... assassinado por um alemão do Dendê, por motivo à-toa: futebol. Quer dizer, futebol e cachaça, né?, porque o X-9 só deu seis tiros no velho porque tava muito doido. A cada tiro, gritava: “Zico”, “Adílio”, “Leandro” e ia desfiando o nome de cada um que marcou na goleada. Ainda vejo o resultado piscando no placar do Maraca: Flamengo 6 x 0 Vasco. Porra, com esse placar, ele queria o quê? É claro que meu pai, mengão doente, zoou pra caralho o mané – como ele ia adivinhar que o maluco era doido mesmo!!!? Num gosto nem de lembrar, que fico assim, ó, arrepiado, meio de emoção meio de raiva mesmo do filho da puta. Foi a única vitória do Flamengo que ninguém no morro comemorou. Foi uma goleada sem foguete, sem festa, sem birita. O enterro do velho não me sai da cabeça: o caixão descendo enrolado no manto glorioso e o morro todo cantando o hino. Papai era muito querido, que nem o Flamengo, tá ligado? Mas vou te falar, irmão, esse jogo ainda não terminou não. Juro. Pode escrever, tô sempre ali no Baile do Dendê, lá no meio da poça, no Cocotá, e no dia que a gente se cruzar, eu e o alemão, mesmo que seja no inferno, eu acabo com ele: pá, pá, pá, pá...

Maurinho entendeu minha revolta e disse baixinho:

— Tranquilo, mano, morreu, morreu – e me abraçou quase comovido.

— Demorô – respondi, e saímos os três, eu, ele e Mary, zoando no salão.

O baile já bombava na batida irada de
MC Camurça quando Maurinho puxou o bonde:

"Cachorro/Se quer ganhar um dindin/Vende o X-9 pra mim/O patrão tava preso, mas mandou avisar/que a sua sentença nós vamos executar/É com bala de HK."

A parede de caixas com alto-falantes amplificava a batida do funk tão alto que se podia sentir o som na pele, o coração pirava como se quisesse sair do peito. O pancadão, o calor infernal, os corpos suados, as cabeleiras soltas, o pisca-pisca frenético das luzes coloridas, o brilho dos piercings nos umbigos das minas à mostra, as rimas proibidas do MC, o álcool, os hormônios, a adrenalina, tudo isso junto deixava a gente meio doidão.

— Norótico – balbuciei pra mim mesmo e saí pra dar um rolé, fumar um.

Sentei no alto do morro, acendi o baseado, dei uns tapas, segurei o barato o quanto pude e fui soltando a fumaça lentamente no vento quente da noite. Olhei a cidade iluminada lá embaixo e imaginei o cheiro dos lençóis das madames que dormiam no ar-condicionado, ao lado dos seus maridos gordos, cheirosas, cheias de tristeza e de amor pra dar, indiferentes ao que rolava na nossa alma, na vida da gente daqui de cima. Pensei como seria legal se eu morasse lá embaixo, playboysão, tênis da Nike, bermudão Cavallera, faculdade... Aí, viajei legal mesmo. Por instantes me imaginei assim, nascido no asfalto, cheio de banca: “doutor Jorge!” – já pensou? – e aí senti um tapinha nas costas e o riso debochado do Maurinho:

— Jorge Perneta, grande Jorge... Viajando só, mano? – disse, enrolando um também. 

A voz rouca do Maurinho me trouxe à real. Olhei pra ele e pra Mary, em silêncio.

— Qual foi, irmão, tá bolado? – disse ele, sentando-se ao meu lado.

Ficamos sentados ali no alto do morro dividindo a mesma paisagem, o mesmo destino. “Visto assim do alto, mais parece um céu no chão...”, lembrei do samba de Paulinho da Viola. Olhei pro Maurinho e vi apenas eu mesmo no fundo dos seus olhos, como uma miragem no deserto. Compreendi que nosso destino era aquele, não adiantava sonhar, a gente era só isso: dois apelidos tatuados na alma, para sempre. Perneta e Capeta. O meu, por conta da bola. O dele, por causa do tráfico. Duas marcas que nos uniria vida afora e não deixaria esquecer nossa origem, nosso lugar. O asfalto era um sonho, separado da gente por um abismo tão fundo como os olhos de Maurinho. Olhei pra Mary e os dela também eram poços de solidão. Então, entendi. A distância entre o morro e a cidade não era física, de chão, terra, cimento... Não, era o jeito ser, viver e até morrer que afastava a gente. Eu e Maurinho, duros, sem casa, família ou grana. Mary, filhinha de papai, com estudo, casa boa e muita grana. Mesmo que ela negasse, era outra origem, saca? Quer dizer, ela era que nem a gente, só que pelo avesso, tá ligado? Os três sem direção, sem prumo, soltos no vento como sementes de merda nenhuma, numa mesma viagem, de segunda, sem bilhete de volta. “Tudo errado, tudo errado”, pensei e me levantei, cutucando Maurinho: “Vamo nessa, irmãozinho?”, mesmo que não soubesse ao certo pra onde.

MAURINHO SE DESPEDIU DE MARY com um beijo. Ela se virou pra mim, me deu um sorriso, bateu forte a mão espalmada contra a palma da minha e foi subindo a rua 15 até sumir por trás do birosca do Zé Paraíba. Acenei pro vazio e descemos abraçados alguns metros até a altura do paiol, que ficava num barraco abandonado tomado pelo mato. A noite tava no fim, como o baile. Empurrei a porta do barraco com ajuda do joelho e, sem dizer nada, apanhei as armas. Pra mim, uma AR-15 e uma PT 380. Pro Maurinho, dei uma HK e uma M16, que ele preferia. Peguei algumas granadas, muita munição e descemos pro asfalto. No final da escada que dá acesso ao morro, já na Teixeira de Melo, paramos uma picape Hilux prata no berro. O motorista pisou no freio sem reagir e, nervoso, abriu a porta e tentou sair, mas o impacto da bala da M16 atirou ele de volta ao banco, já morto. O sangue jorrou do seu peito no estofamento, ao som de Zeca Pagodinho que tocava no CD cheio de luzes. “Deixa a vida me levar/Vida leva eu...” A música que Maurinho mais gostava. “Que beleza!”, ele disse, aumentando o volume, indiferente ao silêncio do morto. “Vamo nessa, irmão”, falei, e reiniciamos a descida com o cheiro de pólvora e o barulho do tiro ainda zoando no silêncio da rua deserta.
Chegamos à Barão da Torre e paramos em frente a um prédio com jardim, grades e vidro fumê. Ouvimos a sirene ao longe e, da calçada mesmo, por trás das grades e do vidro escuro, vimos a silhueta do porteiro e pá! Detonamos o cara dali mesmo com a AR-15. Foi só um tiro e o corpo explodiu contra a parede, antes de rolar no tapete da portaria e parar morto de um jeito meio desengonçado que nos fez rir. Parecia um boneco de pano. Subimos pelo elevador social até a cobertura do prédio de quatro andares. O sábado já anunciava o domingo quando tocamos a campainha do apê. Um velho assustado abriu a porta pra receber a neta que tinha ido ao baile funk e levou uma coronhada na testa. Mulher, filhos e netos correram aos gritos pro centro da sala. O coroa caiu gemendo no sofá com um galo na testa. Entramos. 

— Olha que beleza, mano, vai encarar? – apontei pro Maurinho a gatinha que tremia sob uma camisola azul de seda transparente.

— Pelo amor de Deus, levem o que quiser, mas não toquem na minha neta, ela tem só 14 anos —  implorou a velhinha se borrando de medo.

Olhei pra aquele corpo velho, enrugado, branquelo, e senti raiva, fui até o balcão do bar, peguei uma garrafa que estava aberta, servi uma dose e tomei sem gelo mesmo, num gole. Repeti a dose, virei pra menina que chorava baixinho e, não me pergunte por que, dei um teco bem no meio da testa dela. Quase ao mesmo tempo, Maurinho mandou uma rajada de M16 que atingiu o resto da família como um enxame de abelhas. Maior adrenalina, cara, uns tentavam estancar o sangue que jorrava dos furos com a mão, outros se jogavam no chão tentando escapar. Passamos cerol geral – a mulher, o menino de 6 anos, uma menininha de 2 e o moleque de uns 16, não sobrou unzinho pra contar a história. Por último eu mesmo dei um tiro de misericórdia na cabeça do velho que ainda gemia. Aí tomei outra dose de uísque e olhei no rótulo o cavalo branco como as paredes, que empinava.

“Maior terror, os home quando chegar vão detonar a gente”, disse enquanto arrumava as idéias e os corpos num canto. “Ajuda aí, mano”, falei pro Maurinho, que reclamou: “Bando de filhos da puta, vivem com Deus na barriga e mesmo morto dão trabalho...” “Fala em Deus não...”, disse fazendo o sinal da cruz pra espantar o azar. “Mas sabe que tu tem razão? É tudo montado no ouro mesmo, só a gente na merda... Que se foda, meu irmão, tô nem aí, quero é mais... tá sabendo? E sabe que eu até que gostei, tava na maior secura mesmo, já tinha mês e meio que não fazia uma parada tipo assim adrenalina... Pô, é sinistro, a gente se sente... Pode parecer maluquice, mas sabe que matar faz eu me se sentir vivo?” Maurinho riu da minha conversa mole e eu insisti “tá rindo de quê? É isso mesmo, mano, a gente né bandido? Então... é do ofício, não tem essa de inocente na parada, não. Tamo aí é pra matar e morrer mesmo, tá ligado?”, falei na hora em que as sirenes dispararam lá fora. 

— Rapa fora, Perneta, são os home, irmãozinho – gritou Maurinho apagando meus pensamentos e me puxando pelo braço rumo à escada de serviço.

— Aqui é a polícia. Tá tudo dominado! Joga as armas e se entrega ou vai morrer todo mundo! – berrou o alto-falante dos meganhas.

— Caralho, mané, tá a maior zona lá fora – falou Maurinho, saltando sobre o corpo do porteiro banhado pelo sangue e a luz do domingo que amanhecia.

Na rua, sirenes, luzes, ambulâncias, camburões, carros da TV Globo e bombeiros lembravam um filme daqueles que a gente vê na TV na hora do almoço. A gente tava cercado mesmo, sem saída. E o engraçado é pela primeira vez eu podia escolher viver a minha vida de merda ou sair fora de vez. Ainda tentei os fundos, mas os home tavam lá também. Maurinho olhou pra mim acuado e acenou a arma, apontando uma porta. Meti bronca e arrombei a pontapés. Entramos. O filho do porteiro tentou escapar pela janela, mas agarrei ele pelo pescoço e falei baixinho, encostando a PT no ouvido dele: “Aí, fica quieto, cumpade, tá limpo, a gente só quer sair dessa!”

— Não adianta resistir, o prédio tá cercado! A gente vai entrar! – gritou a polícia.   

Maurinho olhou pra mim e puxou o filho do porteiro, arrastando o moleque até a portaria do prédio, de onde berrou bem alto, metendo bronca legal:

— Aí, se liga nessa, meu irmão, a gente é do comando e tamo incorporado, tá ligado? Só vamo sair daqui morto, tá sabendo? – e mostrou a granada e a PT 380 encostada na cabeça do menino que tremia e rezava baixinho. – A gente quer um advogado e a televisão ou vamo passar rodo geral. E quando vier traz também uma pizza que minha barriga tá uma cuíca, irmão! – falou ele.

Mesmo sem entender direito o que ele tava gritando, eu disse:

— É isso aí, mermão, demorô! – e completei zoando: – E traz também uma Coca litro gelada, se não a gente vai beber mesmo é o sangue quente de vocês!  

Maurinho deu uma gargalhada da piada, acho que de nervoso, interrompida pelo barulho abafado do tiro que atravessou o jardim e explodiu bem na sua cabeça, jogando os miolos e o corpo magro dele contra a parede branca. Levei uns dois segundos pra entender o que tinha acontecido e gritar:

— Filhos da puta! – antes de puxar o pino da granada.

 

Rio de Janeiro, 28/12/2006

1 comentários:

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Unknown disse...

Rapaz, acabei de ler esse conto. Muito bom Nivaldo. Envolvente demais. Acabei de colocar seu blog no meu blogroll!

Um abração e não deixe de escrever seus contos.

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