segunda-feira, 5 de julho de 2010

Cinzas e Diamantes

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Santa Filomena era daqueles lugares estranhos que só existem na imaginação dos loucos e dos poetas, e onde os acontecimentos muitas vezes me faziam ao cabo de um tempo duvidar se de fato haviam ocorrido ou não passavam de lendas como as que costumava ouvir da boca de Pedro Nega, um doido manso que tinha por hobby assustar a molecada com suas histórias de horror e encantamento, recheadas de mulas-sem-cabeça, sacis, boitatás e o mais que sua imaginação permitisse. Foi uma dessas histórias que só os loucos concebem que deixou a cidade consternada e marcou para sempre em minha memória aqueles poucos anos em que lá vivi. Aconteceu nos anos 60 e envolveu a professora de português Esmeralda K. e seu marido coronel Fred Kimberley, um engenheiro civil e paisagista sul-africano que, chegando à cidade no final do século XIX, contratou-a para lhe ensinar português. O que ela fez tão bem que acabou conquistando-o e com ele construindo uma história de amor cujo final até hoje intriga e enleia a imaginação.

O coronel não gostava da patente fajuta que lhe fora atribuída pelos moradores da cidade e que traduzia apenas a maneira com que o povo costuma distinguir os que conseguem algum prestígio na comunidade, seja ele econômico, político ou social. Ou os três juntos, o que aliás era mais comum, embora nenhum destes fosse o caso de Fred Kimberley, que conquistou respeito de todos mais pelo jeito afável e solidário com que se relacionava e exercia seu conhecimento. A profissão não lhe rendeu muito dinheiro, apenas o suficiente para, aos 98 anos, desfrutar com Esmeralda o conforto de uma casa ampla e agradável, de três quartos, com um belo jardim e um quintal cheio de árvores frutíferas, onde ele cultivava o hábito de plantar espécimes da flora brasileira, entre os quais tinha preferência por um frondoso acaiacá, árvore da família do cedro que algumas tribos consideram sagrada e que, anualmente, se engalanava de flores e atraía muitos pássaros, além de fornecer a sombra que refrescava a varanda dos fundos da casa, onde ele costumava deitar para meditar. Como engenheiro e paisagista, Fred sempre soubera valorizar a harmonia entre o concreto e o verde, entre as necessidades do corpo e do espírito, pendendo para este, o que o aproximava mais dos poetas que dos calculistas.

Fora assim quando declarou seu amor a Esmeralda com um soneto que, mesmo tantos anos depois, ainda o levava a identificar nele, sem falsa modéstia, uma certa qualidade literária, especialmente no trecho em que descrevia seus sentimentos e desejos:

O dia amanheceu na rua
vadio pássaro sem ninho
roubando o teu o encanto
com um beijo na janela nua.
E o vento oculto na cortina
ergueu a saia da manhã
brindando a sonolenta lua e
a minha vida que agora é tua.

Evidentemente, o senso crítico do engenheiro já não era o mesmo, embora isso pouco lhe importasse, pois Esmeralda, que também se chamava Maria mas odiava o nome, aos 90 anos ainda guardava a folha amarelecida pelo tempo onde ele declarara seu amor, um amor tão profundo e intenso que juravam haveria de sobreviver ao tempo e – quem sabe – à própria morte. E sempre que chegava uma visita um pouco mais íntima, lá se ia Esmeralda com as mãos já trêmulas de velhice e os olhos embaçados pela catarata mostrar o poema esmaecido. Quase toda a cidade já lera Minha Esmeralda e sabia de cor alguns trechos. Orgulhoso, o velho Kimberley apenas entrelaçava as mãos nas dela e sorria, retribuindo em silêncio aquele amor depurado pelo tempo e que a todos ainda admirava de tão forte e obsequioso.

Assim o coronel e sua esposa passavam a maior parte do tempo: sentados na varanda da casa de mãos dadas recebendo os amigos dos tempos em que cidade tinha poucas casas e todos se conheciam pelo nome. Pois nos anos em que os conheci, mesmo ainda pequena, a cidade já não era aquele povoado de duas ou três ruas com um comércio acanhado, a capela da padroeira que lhe dava nome e o grupo escolar onde se conheceram em tempos idos. Não, Santa Filomena agora tinha rodoviária, farmácia, campo de futebol, casas com parabólicas, carros – poucos, é verdade, mas tinha –, prefeitura, posto de saúde e até um shopping-center, o Filomena’s Malll, ícone da modernidade e orgulho dos moradores, principalmente dos jovens. Todavia, ainda era um lugar tranqüilo, desses que a gente encontra no interior e onde a vida parece se arrastar descalça e os dias se repetem um após outro, interrompidos apenas pela escuridão da noite.


Pois foi num dia desses que de tão comuns nada prometem que aconteceu o inusitado – a casa dos Kimberley não abriu portas ou janelas como de costume e o sol ficou o dia todo ali de plantão, contido, sem poder entrar, até que a lua o substituiu no turno da noite e as estrelas e vaga-lumes acenderam e apagaram e outra manhã chegou e mais dois ciclos se cumpriram até que na quarta noite a cidade testemunhou um fenômeno extraordinário: um raio vindo não se sabe de onde atingiu e pôs abaixo a velha casa dos Kimberley, ricocheteou no chão e voou até o velho acaiacá florido, carbonizando-o de cima abaixo como uma serra de luz azul matizando a noite branca de lua. Foi um susto medonho, um verdadeiro horror. A cidade toda acorreu, uns por curiosidade, outros por sincera solidariedade, a maioria estarrecida. Dezenas de mãos atravessaram a noite revirando os destroços na esperança de encontrar alguém com vida, num esforço vão.

O dia amanheceu e, para espanto e perplexidade de todos, sob os escombros e as cinzas ainda fumegantes da casa não encontraram ninguém. Onde ela se erguia havia apenas uma cratera, como uma enorme pira crematória, de cuja base irradiava-se uma intensa luz azulada. Conta-se – e isto, confesso, não me lembro – que no desespero de encontrar vestígios de Esmeralda e Fred, os moradores seguiram a luz até o fim da cavidade aberta no solo pelo raio e, lá chegando, descobriram duas imensas gemas incandescentes que irradiavam um brilho jamais visto – eram dois diamantes puros, um ao lado do outro, lapidados parecia há séculos.


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