quinta-feira, 8 de julho de 2010

O Diário de Frida H

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É DIFÍCIL CONDENAR ou absolver o passado quando rugas já desenham o tempo em nossa face e o acaso nos impõe a tarefa de reconstruir a vida apenas com fragmentos de memória. Foi esse o meu dilema ao receber pelo correio o pequeno livro de capa vermelha com o nome vazado em branco: O Diário de Frida H. Na embalagem não havia remetente, mas, fosse quem fosse, ser-lhe-ei eternamente grato, pois, mais que uma simples memorabilia, aquele presente apócrifo era a chave que me conduziria ao passado, onde parte de mim ainda aguardava reencontrar-se com sua própria história.

O livro começava com uma epígrafe do comunista tcheco Júlio Fuchik, que testemunhou o horror nazista durante a Segunda Guerra e o registrou no dramático Testamento sob a Forca:

“Só vos peço uma coisa: se sobreviverdes a esta época, não vos esqueçais! Não vos esqueçais nem dos bons, nem dos maus. Juntai com paciência as testemunhas daqueles que tombaram por eles e por vós. Um belo dia, hoje será o passado, e falarão numa grande época e nos heróis anônimos que criaram a História. Gostaria que todo mundo soubesse que não há heróis anônimos. Eles eram pessoas, e tinham nomes, tinham rostos, desejos e esperanças, e a dor do último de entre os últimos não era menor do que a dor do primeiro, cujo nome há de ficar. Queria que todos esses vos fossem tão próximos como pessoas que tivésseis conhecido como membros da vossa família, como vós mesmos.”

O texto me sensibilizou e me arremessou ao dia em que tudo começou e quando o destino de Frida confundiu-se com o meu e o do país: 1o de abril. O Correio da Manhã estampava em letras garrafais a manchete “Fora!”. Mesmo eu, com pouco mais de vinte anos e nenhuma consciência política, não pude deixar de intuir a gravidade do que ocorria. A notícia que Frida leu era assustadora: "A nação não mais suporta a permanência do Sr. João Goulart à frente do governo. Chegou ao limite a capacidade de tolerá-lo por mais tempo. Não lhe resta outra saída senão entregar o governo ao seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao Sr. Goulart: saia.” O comboio de tanques e caminhões na rua sublinhou o sentido daquelas palavras, atropelando minha inconsciência e as esperanças de Frida, que fechou o jornal e recolheu-se em silêncio. O horror do pesadelo que se iniciava, todavia, só nos alcançou na tarde do dia seguinte, quando soldados armados cercaram a casa, na Tijuca, e bateram com truculência à porta, interrompendo o radiojornal em edição extraordinária que acabara de calar Dalva de Oliveira.

EU CONHECERA FRIDA dois anos antes num dos cinemas que havia na Praça Sães Pena – não lembro o nome, acho que Art Tijuca – no qual estreava O Pagador de Promessas. Frida era uma tijucana atípica que, além de gostar de cinema nacional, era amante de teatro, literatura e política. Foi um encontro inusitado. Mesmo sem nos conhecermos, logo na entrada ela me deu o braço e falou sorrindo, tensa: “Finja que me conhece, depois eu explico.” Após nos acomodarmos na sala de projeção, ela ainda permaneceu algum tempo com a atenção dividida entre o drama de Zé do Burro e a cortina que nos separava do hall de entrada, como se temesse a entrada súbita de alguém. Só quando as luzes se acenderam, no final, nos apresentamos e ela justificou-se dizendo que estava sendo seguida, mas não entrou em detalhes. Na saída perguntou-me o que achara do filme e minha resposta lhe arrancou um sorriso de hortelã, sinal de que também gostara. Apesar da diferença de idade – ela era bem mais velha que eu – trocamos telefones e, com o tempo, ficamos amigos e passei a freqüentar com assiduidade a casa dela, que ficava a alguns metros da praça, na Rua Major Ávila.

Na época eu cursava História na UFF e pesquisava genealogia judaica para uma monografia e talvez futuro livro sobre a resistência dos judeus alemães ao nazismo, assunto que me fascinava e através do qual acabei descobrindo que o H que Frida usava como sobrenome em seus artigos para a Esquerda Unida – um jornal clandestino que circulava no meio universitário – era judeu. Seu pai, Alexander Hoffman, era um judeu comunista que vivera em Munique e fugira da Alemanha para o Brasil, trazendo-a juntamente com sua mãe, Sophie, faxineira de um alto funcionário da Gestapo, em Berlim. Apesar da origem, Frida era atéia por convicção – condição que, se não a incomodava, a muitos parecia contraditória. Na verdade, ela era uma pessoa enigmática, triste e que, amiúde, se recolhia a um silêncio quase melancólico, como se guardasse um mistério indecifrável - justamente o que me fascinava e me levava a ouvi-la e, tantas vezes, apenas contemplar reverente aquele seu mutismo monástico.

Quando recolhia-se em si, ela pouco saía, ficando dias, semanas e até meses sem ver a luz do sol, apenas lendo. Vargas Llosa, Lorca, Neruda, Borges, García Márquez e Graciliano Ramos eram seus favoritos, superados apenas pela ‘santíssima trindade da literatura russa’: Dostoiévski, Gorki e Tolstoi. “Guerra e Paz é a obra-prima da literatura mundial”, dizia. E completava: “Nenhum livro em qualquer tempo revelou a natureza da guerra e seus efeitos sobre a alma humana como ele.” Além de fasciná-la, os livros transformavam a clausura de Frida num paradoxo: o corpo ficava recluso; mas o espírito, livre. Nessas ocasiões, a própria casa parecia-lhe adivinhar a alma e fechava-se. Durante o dia, as portas admitiam no máximo réstias de sol ao se abrirem a visitantes como eu. À noite, pouco mudava. Lâmpadas cansadas de sabe-se lá quanto tempo de uso emitiam uma luz tímida que mais lembrava a de candeeiros, reforçando ainda mais o ar de desolação. Contudo, arrisco-me a dizer, havia uma perfeita simbiose entre Frida e a arqueologia de sua casa – a louça sempre pousada sobre guardanapos com ponto de cruz, um aroma de café temperando o silêncio e até um canário, cujo canto eu podia adivinhar pela mímica atrás do vidro da janela –, num ambiente de equilíbrio tão frágil que, na minha imaginação, se uma mosca voasse quebraria o encanto.

Quem a visse ali em silêncio ao pé do rádio, embalando-se na cadeira com o corpo recurvado e o vestido de estambre branco abotoado até o pescoço, sempre com um livro à mão, mergulhada em palavras inauditas e sombras, jamais suporia quão infortunado fora seu passado – assunto aliás sobre qual falávamos até sermos bruscamente interrompidos.

– Já tive sonhos, acreditei num mundo melhor – dizia-me Frida ouvindo Dalva cantar Ave Maria no Morro no velho Telefunken comprado a prestação: “Barracão de zinco/Sem telhado, sem pintura/Lá no morro/Barracão é bangalô/Lá não existe/Felicidade de arranha-céu/Pois quem mora lá no morro/Já vive pertinho do céu.


– Não acredita mais? – indaguei, percebendo que acionara em seu espírito um desses silêncios constrangedores que cessam apenas quando a conversa retoma seu curso.


– Na verdade – disse ela, olhando-me longamente – meus sonhos foram destruídos quando eles arrancaram de mim meu companheiro Jonas – e não ofereceu mais detalhes, talvez por não saber, talvez para me poupar de recordações que não eram minhas.

E antes que eu perguntasse algo sobre Jonas e quem eram ‘eles’ foi que o rádio anunciou “Amigos ouvintes, aqui fala o Repórter Esso, testemunha ocular da história” e a porta estremeceu: TOC! TOC! TOC!

FRIDA LEVANTOU-SE PARA ATENDER enquanto eu aumentava o volume do rádio para ouvir a notícia que emudecera a Rainha da Voz e todo o país: “O senhor João Goulart acaba de deixar Brasília num jato Coronado da Varig rumo ao Uruguai, onde pediu asilo político. O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, declarou vaga a presidência e anunciou que poderá assumir o cargo ainda hoje”, disse Heron Domingues. Corri à sala para dar a notícia, a tempo de ver os soldados remexendo a estante e ouvir a voz firme do oficial pedindo a Frida que o acompanhasse. Nada pude fazer, a não ser segui-los até a rua, onde mal pude ver o jipe sair cantando pneu pela Major Ávila, semideserta àquela hora.

Foi a última vez que vi Frida Hoffman. Os anos se seguiram duros para mim e para muitas outras pessoas no país – algumas presas, torturadas, assassinadas; outras simplesmente “desaparecidas” sem vestígios. O conceito de crime ampliou-se de tal forma que alcançou o pensamento: intelectuais, jornalistas, artistas, estudantes, religiosos e políticos passaram a ser vistos como suspeitos, ameaças potenciais à segurança nacional. Muitos foram presos, como Frida. Por muito tempo ainda busquei notícias dela e de outros amigos sumidos, mas nada. As notícias ora davam conta de que fora solta e vivia em Friburgo, na casa de parentes, ora que continuava presa ou mesmo que estava morta. Olhavam-me com desconfiança e aconselhavam-me a seguir a vida, pois nada podia ser feito. Até que o tempo dos ditadores acabou e o povo retornou às ruas e cantou e gritou de alegria e as bandeiras e livros voltaram a circular livremente e voltamos a sorrir. Isso foi ontem, com a eleição de um presidente civil e o fim da escuridão. Apenas um dia antes de me chegar às mãos o livro que eu achava poderia responder às perguntas que me fizera ao longo dos últimos anos e cujos principais trechos agora destaco com tristeza.

07 DE ABRIL DE 1964

“Desde que cheguei, estou isolada em uma cela. Meu único contato é com meus raptores e seus prepostos, que me submetem a longas sessões de interrogatório. Sei que estou num quartel pela movimentação das tropas, pois a maior parte do tempo permaneço encapuzada, numa estratégia óbvia de me confundir e desorientar. Hoje, pela primeira vez, me autorizaram um banho de sol. E foi muito bom ver o dia, olhar o céu, sentir a brisa da manhã, mesmo por poucos minutos! Ao sair ao pátio, ainda desorientada pela luz, percebi que não estou sozinha e há muitas outras presas. Falei com uma que se identificou como Luíza e me disse que era jornalista... (trecho ininteligível) e tinha sido presa há dois anos em São Paulo e só há três meses estava aqui na Barão de Mesquita. Indaguei dos hematomas em sua boca e braços e ela me disse que eram marcas de tortura. Fiquei apavorada e pensei ‘graças a Deus não tocaram em mim’, num misto de alívio e culpa. De repente, vi do outro lado do pátio meu companheiro Jonas, que eu imaginava morto. Fiquei estática, sem acreditar. Quando me recuperei, tentei me aproximar, mas fui impedida com violência por um soldado que me conduziu de volta ao grupo de mulheres. Percebi que Jonas me viu e me sorriu um sorriso que eu já havia esquecido, de tão longínquo, e que nesse instante me dava novo alento e esperança. Sorri de volta, solidária. Jonas está vivo, não poderia haver notícia melhor!”

27 DE ABRIL DE 1964

“Somente agora começo a retomar meu sentido de orientação. Hoje durante o banho de sol soube por uma companheira que já é 27 de abril. Portanto, estou aqui há exatos 25 dias, que já me parecem uma eternidade! Imagine Jonas, sumido há mais de vinte anos! E ele é apenas um dentre os muitos ‘desaparecidos’ nessa noite de chumbo que se abateu no país, despertando pesadelos e horrores. Ontem tomei coragem e contei a um general sobre minha relação com Jonas, não sei se fiz bem, mas o fato é que ele me deixou vê-lo no pátio e foi maravilhoso abraçá-lo depois de tanto tempo! Conversamos por meia hora e eu mais ouvi que falei, pois Jonas estava ansioso para saber de mim, se eu havia casado, onde estava morando, o que fazia e essas coisas. Disse-lhe que estou bem, nunca casei e não sei porque fui presa, embora desconfiasse (ainda não disse, mas Jonas era militante da ANL – Aliança Nacional Libertadora – quando foi preso. Nesse período tive que me refugiar no interior de Minas, por orientação dele, que temia acontecer comigo o mesmo que com a mulher de Prestes, Olga Benário, que fora entregue aos alemães pela ditadura de Vargas por ser judia). Contei-lhe sobre a conversa que tive com Luíza no pátio e do medo de ser torturada. Ele me sorriu e disse para não me preocupar, pois os milicos não tinham nada contra mim e.... (trecho interrompido).”

20 DE JULHO DE 1966

“Os dias aqui transcorrem como peças de Kafka. Decorridos mais de dois anos e ainda não sei por que fui presa, não me acusaram de nada, mas me impedem de ter visitas ou mesmo advogado. No máximo me encontro com Jonas, por deferência de algum oficial mais liberal. Mas o que era para me desesperar me fortalece ainda mais. Ainda estou viva, apesar da violência com que passaram a me torturar desde o ano passado. Agora parece que já não buscam informação, apenas tentam destruir meu corpo, do que não estão longe pelo visto. Ontem, por exemplo, conduziram-me à sala de tortura, onde alguém ordenou aos gritos que eu me despisse e arrancou com violência meu capuz para que eu nunca esquecesse o que me aconteceria, como se isso fosse possível. Foi a primeira vez que mostraram o rosto, pelo que temi o pior. Mas antes que pudesse raciocinar, ele começou a me espancar e a me chamar de ‘vagabunda’, ‘comunistazinha de merda’ e coisas do gênero. Lembro-me de ter visto sua identidade impressa acima do bolso esquerdo da farda: Ten.-Cel. Sérgio e de como isso o irritou, levando-o a me arrastar até um tanque com água onde mergulhou minha cabeça repetidas vezes, até quase me asfixiar, sempre gritando que comunistas e judeus tinham ‘que morrer como ratos’ e que terminaria o que Hitler não fez – numa referência à minha ascendência. Por fim, arrastou-me ainda molhada até uma cadeira de aço que apelidavam de cadeira do dragão e me aplicaram uma sessão choques por todo meu corpo, especialmente nos seios e na vagina. Desmaiei, só acordei não sei quanto tempo depois, ainda nua, sendo examinada por um médico que disse ao oficial, ‘assim você pode matá-la!’. Ele sorriu cínico e se desculpou pelo excesso, ‘acho que descontei nela a derrota de ontem’, disse referindo-se à vitória da seleção portuguesa sobre o Brasil que, eu soube depois, tirou a chance do tri. E me fiz uma pergunta sem resposta: por que um médico que é treinado para salvar vidas ‘ajuda um torturador?”

7 DE SETEMBRO DE 1967

“O quartel amanheceu hoje semideserto por causa do desfile pela Independência. Ficaram só alguns soldados mais preocupados em acompanhar pelo rádio o amistoso entre Flamengo e Real Madrid do que nos vigiar. Aproveitamos para ficar à vontade e namorar um pouco. Disse ao Jonas que há uma semana não sou torturada o que talvez seja indício de que as coisas estão melhorando. Ele disse que as notícias que tinham não confirmavam isso. Resolvemos não falar em política e colocar o afeto em dia. Resgatamos memórias que achávamos se haviam perdido como o primeiro beijo na barca Rio-Niterói, quando ele quase foi atirado ao mar por ‘desrespeito’, deixando-me constrangida. Na época, beijar em público era absurdo. A lembrança me ruborizou, como se a antiga cena tivesse acabado de acontecer, revelando-me que a imaginação pode ser uma porta para a liberdade – e assim ficamos por instantes.”

13 DE AGOSTO DE 1968

“O número de presos vem aumentando cada vez mais. Ontem conversei com dois que chegaram na semana passada e perguntei porque havia sido presos. O mais novo, que aparentava 18 anos, me disse que estava com amigos pixando o muro do Pedro II com a frase ‘abaixo a ditadura’ quando agentes infiltrados o detiveram. Disse que era filho de um brigadeiro e portanto deveria sair logo. O outro, com cerca de 25 anos, falou que ‘caiu’ de bobeira, quando distribuía panfleto na porta da fábrica pela libertação dos presos políticos. Os dois ‘suicidaram-se’ uma semana depois, segundo nos disse um tenente. Fiquei triste, mas a tragédia aumentou minha convicção de que a ditadura um dia vai ser derrotada, por bem ou por mal.”

25 DE DEZEMBRO DE 1968

“Acabei de falar com um soldado chamado Bené, que é comunista e me disse que o regime está endurecendo, há poucas semanas fechou o Congresso, cassou parlamentares e suspendeu vários direitos constitucionais. Ele disse que tem muito medo de ser descoberto no quartel. À tarde, conversei com Jonas sobre a situação do país – a gente não se via desde que fora levado para ‘interrogatório’, há alguns dias. Ele me confessou que não vê outra saída se não a luta armada: ‘É a única forma de luta que nos resta’, disse, citando o líder nicaraguense Augusto César Sandino: ‘A liberdade não se conquista com flores.’ Ouvi seus argumentos e, pela primeira vez, discordamos. Tenho muitas dúvidas sobre a opção pela luta armada: ‘Acho que ainda temos alternativas antes de embarcar numa aventura’, ponderei. Ele ficou indignado com a observação e perguntou: ‘Você acha que pode enfrentar tanques, metralhadoras, censura, assassinatos e torturas com palavras?’ Fiquei em silêncio, sem responder. E descobri que o país encaminhava-se para a tragédia, o manto de obscurantismo que nos encobriu enfim turvara a nossa visão e o próprio futuro. Esta noite chorei muito, por nós.”


1 DE MAIO DE 1969

“Ontem à noite me encapuzaram e, pela enésima vez, levaram-me pelo longo e escuro corredor até a pequena sala forrada com material acústico. Desta vez, tiraram-me a roupa lentamente, tecendo comentários sobre meu corpo, mas já não reagi e aceitei o ritual com resignação e mudo desespero. Começaram pela combinação de socos e pontapés pelo corpo, choques elétricos nos dedos das mãos e dos pés, vagina, ânus... Um terror. E o pior é que não consegui mais nem gritar quando o fio desencapado mordeu minha carne e o barulho da maquininha se misturou com o riso do torturador. Senti o cheiro de pele queimando, enquanto amarravam o que restou de mim no pau-de-arara – desci ao inferno e desmaiei. Acordei na cama fria, ao lado de um oficial que me perguntou com ironia se estava me sentindo bem. Tive ânsia de vômito e sujei a cama de sangue e urina. Não sei até quando agüentarei, às vezes rezo para que a morte chegue rápido.”

11 DE JUNHO DE 1970

“Continuo me recuperando bem. Este mês não me torturaram, talvez por orientação médica ou por causa da Copa, não sei, todos estão ansiosos para ser tri... Ouvi de um carro de som que passava na rua uma música que me arrepiou e despertou em mim um sentimento de ambigüidade: “De repente é aquela corrente pra frente,/parece que todo o Brasil deu a mão,/todos ligados na mesma emoção, tudo é um só coração,/todos juntos vamos, pra frente Brasil,Brasil,/salve a Seleção!” A melodia é contagiante e tem tudo pra empurrar a torcida. Como brasileira, acho irônico falar em união e emoção, em ‘pra frente Brasil’ e coisas assim num momento de tanto terror. Será que as pessoas sabem o que está acontecendo? Que a ditadura vai usar a vitória para convencê-las de que o Brasil é o melhor país do mundo e coisas desse tipo? Por outro lado, como não ficar alegre com a possibilidade de ser tricampeã do mundo? Não deu outra, estiquei a mão pra fora da cela, levantei o polegar, gritei bem alto pra todo mundo ouvir: PRA FRENTE BRASIL!”


ÚLTIMA ANOTAÇÃO

“Minha querida Frida, desculpe-me invadir a privacidade deste seu diário que você me confiou há dias como se adivinhando o que aconteceria. Só para registrar, meu amor, o Brasil ganhou a Copa e é tricampeão mundial de futebol, como você torcia. Onde você estiver saiba que estou feliz, apesar de tudo. Hoje, quando o dia amanheceu e o silêncio foi assaltado por vozes e gritos, meu coração antecipou o que eu mais temia. Corri até as grades da cela a tempo de ver seu corpo ensangüentado sendo arrastado no corredor pelo carcereiro. Gritei de dor e desespero, em vão. Então abri o seu diário e resolvi acrescentar com lágrimas esta última nota, como homenagem e registro aos que o encontrarem: Frida Hoffman, a mulher que mais amei, foi assassinada no dia em que o Brasil sagrou-se tricampeão de futebol. E eu, Jonas, seu marido, em breve me encontrarei com ela onde estiver. Rio de Janeiro, 22 de junho de 1970.”

1 comentários:

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blog da domestica disse...

Quando leio um texto como este, percebo que não sei escrever!!

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